Um estranho animal de duas cabeças:
o poeta-diplomata
LUÍS FILIPE CASTRO MENDES
À memória de António Pinto da França, diplomata e escritor, homem de cultura e de fina atenção ao mundo dos outros
É meu objectivo fazer uma digressão sobre a figura do escritor que é diplomata, ou do diplomata que é escritor, com especial ênfase na imagem do poeta-diplomata.
Tomemos como ponto de partida uma frase de um manifesto surrealista de 1925 que, ao atacar um poeta francês, Paul Claudel, ao tempo embaixador no Japão, tecia as seguintes considerações, que me permito traduzir:
Para nós não pode haver equilíbrio nem grande arte. Há muito que a ideia de Beleza está caduca. Só fica de pé uma ideia moral, como por exemplo que não se pode ser ao mesmo tempo embaixador e poeta.
E este manifesto lembra-nos que, apesar de Octavio Paz e de João Cabral de Melo Neto, de Paul Claudel e de Pablo Neruda, a ideia de um poeta a exercer funções de representação do Estado provoca ainda resistências e reacções «dos dois lados da barricada», por assim dizer.
Para uns, a ideia de «poeta» remete para uma conotação estereotipada a um irresponsável que vive no mundo dos sonhos e das ilusões e que não tem capacidade para assumir a defesa rigorosa e pragmática dos interesses políticos, económicos e sociais, que um diplomata tem como obrigação defender.
Para outros, o poeta só pode ser um «maldito». Avesso aos ritos e às normas sociais, proclamando-se orgulhosamente «sem qualidades», ele (ou ela) só pode viver à margem da vida social, junto do excesso, da marginalidade ou da loucura. Que Wallace Stevens tenha sido director de uma companhia de seguros, Fernando Pessoa empregado de comércio, T. S. Eliot funcionário de um banco ou Gottfried Benn médico de um hospital não os interessa nem
LUÍS FILIPE CASTRO MENDES
À memória de António Pinto da França, diplomata e escritor, homem de cultura e de fina atenção ao mundo dos outros
É meu objectivo fazer uma digressão sobre a figura do escritor que é diplomata, ou do diplomata que é escritor, com especial ênfase na imagem do poeta-diplomata.
Tomemos como ponto de partida uma frase de um manifesto surrealista de 1925 que, ao atacar um poeta francês, Paul Claudel, ao tempo embaixador no Japão, tecia as seguintes considerações, que me permito traduzir:
Para nós não pode haver equilíbrio nem grande arte. Há muito que a ideia de Beleza está caduca. Só fica de pé uma ideia moral, como por exemplo que não se pode ser ao mesmo tempo embaixador e poeta.
E este manifesto lembra-nos que, apesar de Octavio Paz e de João Cabral de Melo Neto, de Paul Claudel e de Pablo Neruda, a ideia de um poeta a exercer funções de representação do Estado provoca ainda resistências e reacções «dos dois lados da barricada», por assim dizer.
Para uns, a ideia de «poeta» remete para uma conotação estereotipada a um irresponsável que vive no mundo dos sonhos e das ilusões e que não tem capacidade para assumir a defesa rigorosa e pragmática dos interesses políticos, económicos e sociais, que um diplomata tem como obrigação defender.
Para outros, o poeta só pode ser um «maldito». Avesso aos ritos e às normas sociais, proclamando-se orgulhosamente «sem qualidades», ele (ou ela) só pode viver à margem da vida social, junto do excesso, da marginalidade ou da loucura. Que Wallace Stevens tenha sido director de uma companhia de seguros, Fernando Pessoa empregado de comércio, T. S. Eliot funcionário de um banco ou Gottfried Benn médico de um hospital não os interessa nem
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demove desta ideia, digna de um ultra-romantismo exacerbado, mas que
os surrealistas de 1925 (e eram Aragon, Breton, Éluard, Artaud, Bousquet,
Desnos, alguns dos maiores poetas franceses do século passado) perfilhavam
também, ao ponto de responder o seguinte a Claudel, quando ele, justamente
para mostrar que um poeta pode ser um homem prático, gabava os
êxitos da sua, como se diria hoje, «diplomacia económica»:
Nós declaramos considerar a traição e tudo o que, de uma forma ou outra, possa atingir a segurança do Estado, bem mais conciliável com a poesia do que a venda de «grandes quantidades de toucinho» por conta de uma nação de porcos e de cães.
E, com efeito, na entrevista a que este manifesto reagia, o poeta-embai- xador Paul Claudel, para
mostrar bem a sua capacidade e eficiência nesta área económica, que sempre foi importante na vida diplomática (nós não inventámos nada), dizia expressamente:
Durante a guerra, fui à América do Sul [esteve em posto no Rio de Janeiro] para comprar trigo, carne em conserva e toucinho para o nosso Exército e fiz ganhar ao meu país duzentos milhões.
Não é fácil, portanto, ser aceite pelos dois mundos. Para um lado da barri- cada, somos uns «parvos duns poetas ou uns loucos», citando a «Gazetilha» de Pessoa/Campos, que vieram meter-se em assuntos de gente séria. «Este mundo não está para poetas», disse-me uma vez, quando tomei posse de um cargo público, um homem político que eu, aliás, muito respeito. Para o outro lado da barricada, nós, poetas-diplomatas, estamos comprometidos com o poder, corrompidos pelo Estado e pelas suas mordomias e somos exactamente o inverso do que esses poetas pretendem da poesia, somos gente «com qua- lidades» (ou «com atributos», para traduzir mais correctamente a expressão de Musil). Em resumo: como poetas, excelentes diplomatas; como diplomatas, óptimos poetas.
E, no entanto, qual é a questão que se coloca aqui? Como escrevia Maurizio Serra, embaixador e escritor italiano:
A variante do escritor-diplomata faz confusão. Que quer esse estranho animal de duas cabeças? Não lhe bastaria uma, como aos outros mortais? Mas se contamos na literatura universal negociantes de vinhos, inspectores dos monu- mentos históricos, caçadores de baleias, jogadores cobertos de dívidas, empregados de seguros, detectives privados e mesmo grandes criminosos, porque seria negado esse privilégio aos diplomatas?
Nós declaramos considerar a traição e tudo o que, de uma forma ou outra, possa atingir a segurança do Estado, bem mais conciliável com a poesia do que a venda de «grandes quantidades de toucinho» por conta de uma nação de porcos e de cães.
E, com efeito, na entrevista a que este manifesto reagia, o poeta-embai- xador Paul Claudel, para
mostrar bem a sua capacidade e eficiência nesta área económica, que sempre foi importante na vida diplomática (nós não inventámos nada), dizia expressamente:
Durante a guerra, fui à América do Sul [esteve em posto no Rio de Janeiro] para comprar trigo, carne em conserva e toucinho para o nosso Exército e fiz ganhar ao meu país duzentos milhões.
Não é fácil, portanto, ser aceite pelos dois mundos. Para um lado da barri- cada, somos uns «parvos duns poetas ou uns loucos», citando a «Gazetilha» de Pessoa/Campos, que vieram meter-se em assuntos de gente séria. «Este mundo não está para poetas», disse-me uma vez, quando tomei posse de um cargo público, um homem político que eu, aliás, muito respeito. Para o outro lado da barricada, nós, poetas-diplomatas, estamos comprometidos com o poder, corrompidos pelo Estado e pelas suas mordomias e somos exactamente o inverso do que esses poetas pretendem da poesia, somos gente «com qua- lidades» (ou «com atributos», para traduzir mais correctamente a expressão de Musil). Em resumo: como poetas, excelentes diplomatas; como diplomatas, óptimos poetas.
E, no entanto, qual é a questão que se coloca aqui? Como escrevia Maurizio Serra, embaixador e escritor italiano:
A variante do escritor-diplomata faz confusão. Que quer esse estranho animal de duas cabeças? Não lhe bastaria uma, como aos outros mortais? Mas se contamos na literatura universal negociantes de vinhos, inspectores dos monu- mentos históricos, caçadores de baleias, jogadores cobertos de dívidas, empregados de seguros, detectives privados e mesmo grandes criminosos, porque seria negado esse privilégio aos diplomatas?
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Nem se diga que os diplomatas beneficiaram na sua carreira com o esta- tuto de escritores ou os escritores aumentaram o seu êxito com a qualidade de diplomatas. Começando pela prata da casa, como veremos adiante, Garrett teve uma carreira conturbada pela sua oposição frontal ao Partido Cartista e à rainha D. Maria II, Eça teve uma normal carreira de cônsul, que começou por um dos piores postos (Havana) e terminou no melhor (Paris), António Feijó passou quase toda a sua vida diplomática em Estocolmo e António Patrício teve igualmente uma carreira mediana, entre Cantão e Caracas, passando brevemente por Londres.
Com excepção do Quai d’Orsay no período entre as duas guerras, onde os chamados «Berthelot boys» (Paul Morand, Jean Giraudoux e, sobretudo, Alexis Léger, conhecido enquanto poeta como Saint-John Perse), sob a égide do secretário-geral Philippe Berthelot, constituíram um real grupo de poder e influência dentro do Ministério e deram até origem a uma moda literária que o crítico da época Albert Thibaudet qualificou como littérature à la valise (referindo-se por esta expressão à «mala diplomática» ) e talvez também da América Latina, onde grandes escritores como o já citado Octavio Paz, mas também Rubén Darío, Miguel Ángel Asturias, Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Alejo Carpentier, Jorge Edwards, foram (e Jorge Edwards ainda é) todos embaixadores dos seus países, não vemos por aí além grandes «siner- gias» (para usar uma horrenda expressão dos nossos tempos) entre carreira diplomática e carreira literária. Com uma excepção de peso, que é interessante: justamente Saint-John Perse.
Ao ler a exaustiva biografia que lhe foi dedicada por Renauld Meltz, não ficamos com qualquer dúvida de que o embaixador Alexis Léger e o poeta Saint-John Perse souberam muito bem estender a escada um ao outro, Léger longos anos como secretário-geral do Quai d’Orsay, sucedendo a Berthelot, Saint-John Perse a dever em muito o Prémio Nobel da Literatura às pressões diplomáticas do seu amigo secretário-geral das Nações Unidas, o sueco Dag Hammarskjold.
Ao contrário de outros, como Morand, que escolheram Pétain e a cola- boração, o nosso poeta-diplomata emigrou durante a Segunda Grande Guerra para os Estados Unidos, onde cometeu um erro político fatal para a sua carreira: frontalmente hostil a De Gaulle, veio influenciar Roosevelt na funda antipatia que o presidente americano sempre sentiu pelo líder da Resistência e futuro presidente da França, hostilidade que só a influência de Churchill (que não era um incondicional, longe disso, do general De Gaulle, mas que queria, com realismo e visão, manter a França como potência europeia aliada no pós- -guerra) logrou demover. Naturalmente, após a libertação da França, Léger, embora nunca tenha sido um colaboracionista, afastou-se da diplomacia, por ser radicalmente incompatível com Charles de Gaulle.
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Compreende-se que poucos anos depois da chegada de De Gaulle ao
poder e com o gaullista André Malraux candidato ao mesmo Prémio Nobel, a
decisão da Academia Sueca, sempre avessa às influências directas das capitais,
não tenha caído bem junto do governo francês. Este poeta-diplomata podia
estar em desgraça como diplomata, mas ficou em graça como poeta.
Em geral, a sorte dos escritores-diplomatas tem sido muito variável. Para não citar o caso extremo de Dante, que, após a missão diplomática que fez a Roma, foi condenado pela sua cidade de Florença a ser queimado vivo, sorte a que escapou pelo exílio, encontramos percursos bem diferenciados, desde Chateaubriand, que foi embaixador na Santa Sé e depois ministro dos Negócios Estrangeiros de França, grandezas a que ele não nos poupa nas suas vaidosas, mas geniais, Mémoires d’outre tombe, a Stendhal, que nunca passou de cônsul em Civitavecchia e era azedamente repreendido quando era apanhado, pelo seu ministro em Paris, fora do posto (o que aconteceu muitas vezes).
No Brasil, pode dizer-se que saiu a sorte grande ao Itamaraty: aquele que é, a meu ver (e o falecido Óscar Lopes partilhava esta opinião), o maior prosador da língua portuguesa do século XX, João Guimarães Rosa, era diplomata de carreira, foi cônsul em Hamburgo e depois ocupou altas funções no Ministério. Dois dos maiores poetas de sempre da língua portuguesa, João Cabral de Melo Neto (que foi embaixador em Dakar e cônsul no Porto e me aconselhou a ficar sempre cônsul e nunca querer ser embaixador) e Vinicius de Moraes (capitão do mato, poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil) foram membros da carreira diplomática brasileira. Não é pouca coisa.
Em Portugal, diplomacia e literatura apontam-nos sempre em primeiro lugar para a figura do ilustre membro da carreira consular (na altura separada da carreira diplomática) José Maria Eça de Queirós. Quis sempre ser cônsul, recusou uma hipótese (aliás, remota) de vir a ser embaixador no Brasil e António Nobre, que o visitou em Paris, descreveu a sua actividade consular como resumida a vir assinar o expediente ao consulado no fim da manhã. Trata-se, a meu ver, de uma injustiça. Eça levou muito mais a sério a profissão do que se pensa geralmente e quer os relatórios consulares que escreveu, quer a correspondência sobre o empréstimo que foi negociar a Londres estão aí para o testemunhar. O que se passou foi que Eça não escondeu o seu pouco interesse pela poesia de Nobre — e isso é algo que um poeta nunca pode perdoar!
Já no caso de Almeida Garrett, embaixador em Bruxelas (onde aliás se arruinou) e autor de uma inteligente análise de política internacional que é o Portugal na Balança da Europa, a sua hostilidade ao Partido Cartista e a funda antipatia que sempre por ele sentiu D. Maria II afastaram-no de mais altos voos na diplomacia. Tinha acabado de ser transferido de Bruxelas para Copenhaga, em 1835, quando a rainha, num seco despacho, o demitiu sumariamente... Mais tarde, sendo já rei D. Pedro V, chegou a ser ministro dos Negócios
Em geral, a sorte dos escritores-diplomatas tem sido muito variável. Para não citar o caso extremo de Dante, que, após a missão diplomática que fez a Roma, foi condenado pela sua cidade de Florença a ser queimado vivo, sorte a que escapou pelo exílio, encontramos percursos bem diferenciados, desde Chateaubriand, que foi embaixador na Santa Sé e depois ministro dos Negócios Estrangeiros de França, grandezas a que ele não nos poupa nas suas vaidosas, mas geniais, Mémoires d’outre tombe, a Stendhal, que nunca passou de cônsul em Civitavecchia e era azedamente repreendido quando era apanhado, pelo seu ministro em Paris, fora do posto (o que aconteceu muitas vezes).
No Brasil, pode dizer-se que saiu a sorte grande ao Itamaraty: aquele que é, a meu ver (e o falecido Óscar Lopes partilhava esta opinião), o maior prosador da língua portuguesa do século XX, João Guimarães Rosa, era diplomata de carreira, foi cônsul em Hamburgo e depois ocupou altas funções no Ministério. Dois dos maiores poetas de sempre da língua portuguesa, João Cabral de Melo Neto (que foi embaixador em Dakar e cônsul no Porto e me aconselhou a ficar sempre cônsul e nunca querer ser embaixador) e Vinicius de Moraes (capitão do mato, poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil) foram membros da carreira diplomática brasileira. Não é pouca coisa.
Em Portugal, diplomacia e literatura apontam-nos sempre em primeiro lugar para a figura do ilustre membro da carreira consular (na altura separada da carreira diplomática) José Maria Eça de Queirós. Quis sempre ser cônsul, recusou uma hipótese (aliás, remota) de vir a ser embaixador no Brasil e António Nobre, que o visitou em Paris, descreveu a sua actividade consular como resumida a vir assinar o expediente ao consulado no fim da manhã. Trata-se, a meu ver, de uma injustiça. Eça levou muito mais a sério a profissão do que se pensa geralmente e quer os relatórios consulares que escreveu, quer a correspondência sobre o empréstimo que foi negociar a Londres estão aí para o testemunhar. O que se passou foi que Eça não escondeu o seu pouco interesse pela poesia de Nobre — e isso é algo que um poeta nunca pode perdoar!
Já no caso de Almeida Garrett, embaixador em Bruxelas (onde aliás se arruinou) e autor de uma inteligente análise de política internacional que é o Portugal na Balança da Europa, a sua hostilidade ao Partido Cartista e a funda antipatia que sempre por ele sentiu D. Maria II afastaram-no de mais altos voos na diplomacia. Tinha acabado de ser transferido de Bruxelas para Copenhaga, em 1835, quando a rainha, num seco despacho, o demitiu sumariamente... Mais tarde, sendo já rei D. Pedro V, chegou a ser ministro dos Negócios
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Estrangeiros num governo de Saldanha... durante exactamente treze dias, de
4 a 17 de Agosto de 1852.
Mas, sem esquecer os portugueses que foram escritores e diplomatas, desde o Padre António Vieira à Marquesa de Alorna, passando por Guerra Junqueiro, Manuel Teixeira Gomes, Abel Botelho (estes três nomeados embai- xadores em 1911, pela recém-instaurada República Portuguesa), Wenceslau de Moraes, António Patrício, António Feijó, Guilherme de Castilho, Armando Martins Janeira, Albano Nogueira, o Marcello Mathias do Lusco Fusco, o seu filho Marcello Duarte Mathias, o Álvaro Guerra, o José Fernandes Fafe, o José Augusto Seabra, o Paulo Castilho, o Francisco Duarte Azevedo, volto agora para o lugar que escolhi, a poesia, para abordar a relação da poesia com a vida diplomática.
A imagem do poeta «maldito» e «associal», que tem ainda algum peso no âmbito dos lugares-comuns correntes, não pode deixar de ser associada à imagem do poeta como ser directamente inspirado pela divindade, como no Ion de Platão, detentor de um «dom divino» (Novalis), «legislador da Humanidade» (Shelley), o que forçosamente faz dele um xamã ou um ser predestinado para a luz ou para a desgraça. Como dizia Herberto Helder, no prefácio da sua antologia Edoi Lelia Doura:
Vejo eu mesmo, à custa de operações secretas — alimentos, silêncios — que me sustenho no âmbito mais avesso ao exterior de uma arte que é interna, arte cerrada a que se chega por dote e exercício próprios, das cercanias para o meio, um combate com as armas inocentes e astuciosas da magia, carne contra carne, imagens, sopro, os terríveis substantivos da terra, objectos vivos.
A esta imagem mágica e mística do poeta, proponho-me contrapor a ideia de John Keats:
O poeta, enquanto tal, não tem identidade — ele é tudo e nada — não tem perfil — goza da luz e da sombra. O que choca o filósofo virtuoso faz as delícias do camaleão que é o poeta. O poeta é o menos poético dos seres, porque não possui identidade: é certamente a menos poética criatura de Deus.
O poeta não é maior nem menor do que qualquer outro homem, não ouve nenhum deus dentro de si e não tem qualquer pacto com as armas ou as
Mas, sem esquecer os portugueses que foram escritores e diplomatas, desde o Padre António Vieira à Marquesa de Alorna, passando por Guerra Junqueiro, Manuel Teixeira Gomes, Abel Botelho (estes três nomeados embai- xadores em 1911, pela recém-instaurada República Portuguesa), Wenceslau de Moraes, António Patrício, António Feijó, Guilherme de Castilho, Armando Martins Janeira, Albano Nogueira, o Marcello Mathias do Lusco Fusco, o seu filho Marcello Duarte Mathias, o Álvaro Guerra, o José Fernandes Fafe, o José Augusto Seabra, o Paulo Castilho, o Francisco Duarte Azevedo, volto agora para o lugar que escolhi, a poesia, para abordar a relação da poesia com a vida diplomática.
A imagem do poeta «maldito» e «associal», que tem ainda algum peso no âmbito dos lugares-comuns correntes, não pode deixar de ser associada à imagem do poeta como ser directamente inspirado pela divindade, como no Ion de Platão, detentor de um «dom divino» (Novalis), «legislador da Humanidade» (Shelley), o que forçosamente faz dele um xamã ou um ser predestinado para a luz ou para a desgraça. Como dizia Herberto Helder, no prefácio da sua antologia Edoi Lelia Doura:
Vejo eu mesmo, à custa de operações secretas — alimentos, silêncios — que me sustenho no âmbito mais avesso ao exterior de uma arte que é interna, arte cerrada a que se chega por dote e exercício próprios, das cercanias para o meio, um combate com as armas inocentes e astuciosas da magia, carne contra carne, imagens, sopro, os terríveis substantivos da terra, objectos vivos.
A esta imagem mágica e mística do poeta, proponho-me contrapor a ideia de John Keats:
O poeta, enquanto tal, não tem identidade — ele é tudo e nada — não tem perfil — goza da luz e da sombra. O que choca o filósofo virtuoso faz as delícias do camaleão que é o poeta. O poeta é o menos poético dos seres, porque não possui identidade: é certamente a menos poética criatura de Deus.
O poeta não é maior nem menor do que qualquer outro homem, não ouve nenhum deus dentro de si e não tem qualquer pacto com as armas ou as
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astúcias da magia. As vozes que ele pode ouvir, sobre as falésias do Duíno ou
ao volante do Chevrolet na estrada de Sintra, vêm daquele manancial interior
de palavras e de ritmos a que Maiakovski chamava «as reservas poéticas» e
que Valéry definia inteligentemente, dizendo que «só o primeiro verso nos é
dado, todo o resto do poema é construído».
Como o diplomata que, ao serviço do seu país, vai absorvendo todas as culturas por que passa, o poeta absorve todas as experiências e todas as palavras, mas por fim vai tentar ser criador de mundos na linguagem, de mundos que vão sempre muito além do que ele próprio é e experimenta. Ou, como dizia Fernando Pessoa, «Não meu, não meu / é o que escrevo / a quem o devo?».
O poeta só existe e viaja nos poemas que escreve, nas palavras de que, como dizia Dag Hammarskjold, também poeta e diplomata, se serve como uma chave e não como uma gazua. Neste sentido, o diplomata é apenas o profissional que coexiste com o poeta — como todos nós coexistimos com os vários e diversos «eus» de que somos feitos.
Como o diplomata que, ao serviço do seu país, vai absorvendo todas as culturas por que passa, o poeta absorve todas as experiências e todas as palavras, mas por fim vai tentar ser criador de mundos na linguagem, de mundos que vão sempre muito além do que ele próprio é e experimenta. Ou, como dizia Fernando Pessoa, «Não meu, não meu / é o que escrevo / a quem o devo?».
O poeta só existe e viaja nos poemas que escreve, nas palavras de que, como dizia Dag Hammarskjold, também poeta e diplomata, se serve como uma chave e não como uma gazua. Neste sentido, o diplomata é apenas o profissional que coexiste com o poeta — como todos nós coexistimos com os vários e diversos «eus» de que somos feitos.
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ora aí está, jorge edwards, interrompo a leitura do ensaio quando dou com este nome, embaixador do chile em paris aos 82 anos, um dos grandes escritores chilenos, diplomata de carreira, conselheiro de pablo neruda em paris na altura da pinochetada, não é poeta, é romancista, ensaista, memorialista dele próprio e doutros, autor da memória diplomatica persona non grata, livro gostoso de ler, adequada leitura para diplomatas, quem não gostaria de ter uma missão assim em cuba, enviado por allende para reabrir em havana a embaixada, mandado retirar por fidel, persona não grata, que diplomata não gostaria de escrever a seguir a missão assim memória assim?
ReplyDeletecurioso, encontrei por acaso o livro numa já não existente livraria do bairro de santos, em espanhol, em 1973, comprei sem conhecer o autor,
jorge edwards continua a escrever bons romances e memórias, pois aí está um grande escritor e profissional perfeito diplomata de carreira, o ultimo livro aqui está em casa, pronto para ler, descobrimento da pintura, mas talvez os grandes livros dele sejam para mim os convidados de pedra, o sonho da historia, o inutil da familia, o persona non grata
jorge edwards não exerceu funções durante a ditadura de pinochet, ora aí está, um bom diplomata de carreira pode perfeitamente ser um bom escritor, mas volto à minha conclusão, ficará o escritor e na biografia a anotação que foi diplomata, mas os seus dotes de escritor diplomata estão presentes na memória da missão cubana, só um escritor diominando na perfeição a arte de escrever bem escreveria esse relatório. e continuo a pler o ensaio publicado na colóquio, etc
mas são felizmente muitos os escritores diplomatas, ou se preferirmos os diplomatas escritores que existem pelo mundo e tempos fora.
ReplyDeleteum diplomata italiano escreveu um livro sobre os diplomatas escritores do seu pais, elenca cerca de 300 na carreira só nos seculos 20 e 21, muitos do tempo fascista. mete lá tudo, poetas, romancistas, historiadores, biógrafos, memorialistas, ensaístas, politólogos. Um dos incluídos é adolfo maresca o autor conhecido de manuais diplomáticos, consulares, importante diplomata e embaixador italiano.
há 3 ou 4 anos houve um colóquio internacional sobre o tema organizado e patrocinado pelo mne francês e sorbonne com participação de especialistas de vários países, lá esteve num dos debates o chileno Jorge edwards, tambem ruffin. houve um pouco de tudo nos temas tratados, escritores diplomatas franceses, italianos, russos, memorialistas diplomatas belgas, suissos, japoneses, a riqueza ou fecundidade da américa latina nestes “animais de 2 cabeças”, os poetas diplomatas, etc, pois foram 3 dias e uma recepção do mne francês Juppé oferecida aos participantes, e não está mal, mne que se preze trata do tema literatura e diplomacia ou escritores diplomatas com interesse e carinho.
em espanha o escritor diplomata também existe em bom numero e qualidade e em frança alguns ganharam o nobel, o goncourt ou foram membros da academia. e na grecia um poeta diplomata ganhou o nobel, mas nobeis poetas e diplomatas há vários...
mas a convergência escritor/diplomata como se faz? Simplesmente acontece coincidir na mesma pessoa mas sendo as 2 actividades completamente separadas? ou a diplomacia e experiencia desta vida são um dos temas sobre que escreve, directa ou indirectamente, seja em romance ou poesia ou teatro? as lendas da india existiriam sem a vida diplomática? o estilo diplomático de relatórios, informações, despachos, e um diplomata é suposto escrever bem, com clareza, rigor, estrutura, correcção, influenciará a escrita do diplomata quando é escritor? ao contrário, o diplomata que é romancista ou poeta ou dramaturgo terá tendência a adornar os seus escritos profissionais com narrativas, diálogos, ou simplesmente imagens e comparações, talvez mesmo metáforas? De tudo um pouco, creio.
e os escritores diplomatas que satirizam a vida diplomática? não só durrell, mesmo diplomatas portugueses o fizeram, li há anos um romance em que o secretário de embaixada aproveitando as férias ou uma qualquer ausência do seu embaixador (casado) lhe rouba a amante no posto onde estão, e também uns contos doutro que pintavam de forma caricata um director-geral do mne, sem nomes claro, mas certamente identificável para quem viveu esses tempos…
lugar aparte terá o diplomata memorialista ou diarista, dando conta das suas experiencias, e há-os magníficos. e há ainda os que escrevem curiosas monografias sobre os países onde serviram, li uma dum cônsul português na guiana do sec xix e outra recente sobre a Venezuela.
e a mulher diplomata escritora? há menos pelos vistos, mas há as que são cônjuges de diplomatas e escrevem.
e na literatura diplomática poderemos incluir os escritores não diplomatas que escreveram bons romances ou peças de teatro com intriga diplomática tal como o embaixador de andre brink ou o senhor embaixador de erico veríssimo ou a peça o embaixador sem medo (do brasil em lisboa quando acolheu humberto delgado)?
os surrealistas não gostavam de claudel, este de certeza não gostava dos surrealistas, melhor assim, hoje podemos apreciar os 2 grupos, almada negreiros também não gostava do dantas (não sei se foi diplomata) e muitos tinham razão em não gostar do antónio ferro, embaixador politico de salazar em berna e roma, nem doutros.
interessante e útil ensaio este de lfcm na colóquio, ponto de partida para outros estudos e, porque não? um colóquio português como o que o quai d’orsay organizou em frança…
tambem ensaio em boa hora memória dum diplomata escritor grande diarista e contista
Um belo texto que faz pensar!
ReplyDeleteO "Coca Cola Killer" do Vitorino de Almeida e o policial do Jacinto Rego de Almeida não têm ponta de graça, Patrício Branco, são "romans à clé" afins de outros autores esquecidos da carreira, como o Sapim! Vejo que está bem informado, as actas do colóquio do Quai d'Orsay têm sido uma fonte importante para estes meus apontamentos. Obrigado a todos os que lêem estas notas e, por favor, façam sugestões.
ReplyDeletenão li o coca cola killer mas conheço alguem que se sentiu visado ou retratado num dos personagens do livro...e gostou!
ReplyDeletehá um romance que tenho na estante mas não li, não sei o valor que terá, uma agulha no céu do albano nogueira, fino diplomata foi este senhor que aos 90 anos passava um mês de férias num hotel de cascais ou perto, que leria? escreveria? quem me contou coincidiu no mesmo hotel e disse que ele passava esses dias de férias sozinho na estancia de mar no hotel, convidou-o então para comerem, conversarem, talvez dar algum passeio à beira-mar, etc
história que podia constar do a la recherche...
continuando com curiosidades, num livro publicado há alguns anos com o apoio do instituto diplomatico e consular, obra onde se misturam textos de vária ordem, diário, poesia, evocações, cartas, o autor diplomata queixa-se ou lamenta-se num poema de nunca ter sido promovido a embaixador por ser gordinho e pouco elegante...
vou continuar a pensar neste tema, literatura e diplomacia, escritores diplomatas, diplomatas escritores, etc, etc, bem interessante e rica a matéria...
Garanto-lhe, Patrício Branco, que houve quem tivesse sido promovido a embaixador, mesmo sendo gordinho e pouco elegante…
ReplyDeleteJá agora diga-me o nome do autor em causa.
O Albano Nogueira foi dos fundadores da "Presença", como o Vaz Pereira (o "Natas", bom pintor e desenhador, mas não escritor) foi fundador da "Távola Redonda"…
manuel malheiro ou malheiros dias, não sei se são exactamente as palavras dele, mas a ideia é essa, o livro tem uma parte de diário, outra de evocação de postos onde esteve (o ultimo foi milão mas é ao brasil que dedica mais espaço), outra de poemas, talvez tambem cartas. não tenho o livro à mão, dentro de dias já o poderei folhear e direi mais...
ReplyDeletepintores diplomatas há alguns, 2 ou 3 mesmo com razoavel qualidade.
desconhecia o papel do vaz pereira na távola redonda, vou ver
A minha velha amiga, a 'velha senhora', médica de profissão e rimalhadeira serôdia, leu e gostou do ensaio - e sonetilhou:
ReplyDeleteque bom ser rimalhadeira
sem ter nada a ver com nada
diplomata ou curandeira
curadeira é o que eu sou
só escrevo se me agrada
amo quem queira e me queira
quero amar e ser amada
enquanto inda por cá estou
viver sempre em bebedeira
de amor vinho ou poesia
baudelaire é que sabia
bebedeira noite e dia
que em breve velha me vou
sem foder como fodia