Saturday, December 26, 2015

Estrelas e pirilampos


Tantas luzes se apagam na terra:
como reconhecer os caminhos?
Pois aqui sumiram os vagalumes
e respira o mundo no escuro e depois
o luar emerge sobre rochas vagas
sem distinguir a terra do mar.

Estrelas da Ursa, ajudai os homens
a enfrentar este escuro que vem de dentro!

Depois da festa


Basta olhares-me nos olhos: estão vazios.
Das imagens e das luzes que passaram
ficou o rasto amargo de memórias
que melhor não fossem ditas nem pensadas.
Tu não guardas nada, tu atravessas
as coisas que foram vida e alegria
e no que te demoras há o rasto
do que para sempre sobrou da tua vida.
O fim da festa é sempre um bom momento
para tomares por ti o peso à alegria
e sorrires com os teus olhos: estão vazios.
Nunca teve uma história o que te deram
nem a tua sombra na terra fez o dia.

Friday, December 25, 2015

Bom Natal


Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio
No prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos. 
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A casa, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.
DAVID MOURÃO FERREIRA

Bom Natal

Bom Natal

Tuesday, December 15, 2015

Poesia avulsa

INSÓNIA


Nem sequer uma mão morta
vem bater à minha porta

(Alexandre O'Neill)



Gelo fino à minha porta,
uma noite sem dormir:
nem sequer uma mão morta
para as janelas abrir...

Porque dentro do meu quarto
a tempestade do sonho
são palavras que reparto
e que esqueço quando ponho

numa forma de poema
no forno pela manhã,
sem que sequer a mão trema
de fúria ou febre terçã.

Esqueci o que ia dizer.
Bom, o dia vai nascer.






Friday, December 11, 2015

NÃO TENDO OUTRO MODO DE ENVIAR A TODOS E A CADA UM DOS MEUS AMIGOS VOTOS DE BOAS FESTAS, REQUENTEI ESTES VERSOS, QUE PEÇO LEIAM A BEBER UM BOM VINHO


É em vão? Talvez o seja.
Estarão fora de moda:
versos em que me reveja,
como saudade da prosa*...


Não sei porque vou teimar
na redondilha maior,
quando o verso vai saltar
dentro de um computador

e partir ao vosso encontro
na rede da internet,
como anacrónico monstro
que não sabe nem promete.

É em vão? É, certamente.
Mas ele há vícios piores!
Seja pois este presente
para os meus poucos leitores...


*citação de Manuel António Pina "poesia, saudade da prosa"

Thursday, December 3, 2015

Árvores


Um livro, um filho, sim, mas porquê uma árvore?
De um livro e de um filho tudo se pode esperar e desejar,
de uma árvore apenas que cresça,
que se multiplique laboriosamente em folhas
e que no outono as deixe cair por terra
para receber o dom
do inverno.

Saturday, November 14, 2015

À França

"La Marseillaise" de Jean Renoir

À França

Friday, November 13, 2015

Thursday, November 12, 2015

Wednesday, November 11, 2015

BYRON OLHANDO AS RUÍNAS DE MONSERRATE



No meio de toda a beleza que não merecemos,
Monserrate. Torres meio derrubadas
e corredores vazios que conduzem a salas
desfeitas em pó e esquecimento.
Beckford, o cabotino, quis construir aqui o seu reino
e deixou-nos apenas a ruína de um império de pobres,
imaginado entre os braços dos seus criados portugueses
e a memória do intragável livro que escreveu na juventude.

É a beleza que me alucina de azedume e raiva.
Esta beleza deve morrer. Eu continuo
o meu percurso e construo o meu personagem,
mais duradouro e firme do que este pobre e tolo palácio
desenhado por um príncipe de fantasia. Nos meus poemas
eu sou a própria realidade das coisas.

Os portugueses não merecem a beleza,
mas talvez seja bom para eles viverem assim:
entre ruínas
e rancores.

( NOTA : Este poema responde ao profundo ressentimento que transparece nos versos famosos de Byron no "Childe Harolde" sobre Sintra e os portugueses; Monserrate, quando foi avistado por Byron, era uma ruína, abandonado palácio que William Beckford tentara erguer à medida dos sonhos que deixara escritos no seu romance "Vathek"; Byron não podia saber que o palácio viria a ser reconstruído poucos anos depois pelo seu compatriota Cook, para mais tarde voltar a ser abandonado em 1940; a raiva de Byron aos portugueses tem conhecido várias explicações por parte 
dos historiadores, mas uma leitura imediata do poema fá-la ressurgir diante de nós, inteira como um insulto atirado hoje) 

Friday, November 6, 2015

A força do destino

Sunday, November 1, 2015

Dia de Finados



Arnold Bocklin, A Ilha dos Mortos


A ILHA DOS MORTOS REVISITADA


"Um sonho acordado" foi o que a compradora
pediu ao pintor.

E o que é mais a morte do que um sonho acordado,
de que deslizam as roupas, ao se entrever na água
a sombra do que sequer chegámos a ser?

Muitas vezes me perguntei
onde vim encontrar esta ilha.
Sei-o agora, mas é já muito tarde para partilhar
este saber que nunca mais será um privilégio.
Por isso olho esta figura de branco, eternamente de costas para nós,
ela olha de frente a água e a morte,
e pergunto-me se o caixão não está vazio. 

Tuesday, October 27, 2015

Os sonhos da direita...


O 18 do Brumário: Napoleão dissolve pela força a Assembleia Parlamentar 

Sunday, October 25, 2015

Clássicos da História

David, Le Serment du Jeu de Paume

"Dites au Roi que nous sommes là par la volonté du Peuple et que nous ne sortirons que par la force des baïonnettes" (Mirabeau)

Tuesday, October 20, 2015

Angelus novus



Paul Klee, Angelus Novus

"Ce qui est venu au monde pour ne rien troubler ne mérite ni égards ni patience"

(René Char)

Monday, October 19, 2015

Um poema do último livro de Nuno Júdice

Luis de Menezes, Retrato da Viscondessa de Menezes, 1862

VARIAÇÃO CELESTE

Colhi a flor de um relâmpago
de entre os teus seios juntos, e quando
estremeceste foi como se uma estrela
tivesse vacilado nos ombros
da manhã.

Pus essa flor no negro
lago dos teus olhos, e as suas
raízes estenderam-se pelo fundo
da tua memória até esse dia em que
a lava do início te inundou.

E percorri com o tempo
de uma vela de moinho o arco
das tuas sobrancelhas, procurando
na sua margem o pórtico
dos teus lábios.

Nuno Júdice, A Convergência dos Ventos, Lisboa, Dom Quixote, 2015, p.40

Um poema de "Óxido" de Gastão Cruz

Turner




EXERCÍCIOS DE MORTE

Corríamos perigo e não sabíamos
corrê-lo: cada noite era um oceano
em que nadar causava maior dano
ao acto de viver; substituíamos

toda a roupa molhada quando o mar
as ilhas submergia e refluindo
descobria lençóis de lava findo
o exercício de morrer; amar

já se encontrava aquém da ameaça
e um novo exercício começava,
princípio e fim da noite, inútil chave
da câmara fechada onde uma baça

falsa promessa o breve movimento
doutra onda traçava no mar lento

Gastão Cruz, Óxido, Lisboa, Assírio e Alvim, 2015, p. 30



Uma luz na noite


Édouard Manet, Clair de lune sur le port de Boulogne

Friday, October 16, 2015

Fonte

FONTE


Suspende um pouco o escorrer das palavras
entre as pedras: nenhum rio desponta
destes matos e pedregais onde a memória
nada encontra para contar.
Às vezes debrucei-me a ouvir as tuas histórias,
mas tudo eram paisagens fingidas, a cal cobria as pinturas
dos frescos deixados nos muros, toda a épica
de que te rias, campos fora.

A minha vida, dizes? Meu pai ergue uma pedra ao alto
e joga-a para longe, as montanhas estremecem,
mas logo tudo regressa a uma impossível
serenidade.
Os mosaicos escondidos sob a terra fértil.

A fonte da poesia é a história que nunca contámos.
Nunca contámos. Como se alguém
nos pudesse ouvir.




Tuesday, October 13, 2015

A surpresa

Gustave Courbet

Saturday, October 3, 2015

Saturday, September 26, 2015




Ruínas de Selinunte, Sicília




SICÍLIA, SETEMBRO


Temos perto de nós os invasores
e numa terra de ruínas e silêncio
faz-se mais luminosa esta certeza
que nada sabemos do que virá breve.

Os guerreiros não esperavam aliados
e os comerciantes à beira de novos templos
dispunham o trigo, as tintas, as pedrinhas:
que importa o rei cunhado nas moedas?

Temos perto de nós os invasores
e o ruído da História soberana:
som e fúria, só no fim saberemos
do que estivémos tanto tempo à espera.

As ondas são mais baixas neste mar
e as civilizações, bem vês, são só a espuma...






Friday, September 25, 2015

I Luoghi del Gattopardo

Più nessuno mi porterá nel Sud (Salvatore Quasimodo)



Ragusa, Sicília


La luna rossa, il vento, il tuo colore
di donna del Nord, la distesa di neve…
Il mio cuore è ormai su queste praterie,
in queste acque annuvolate dalle nebbie.
Ho dimenticato il mare, la grave
conchiglia soffiata dai pastori siciliani,
le cantilene dei carri lungo le strade
dove il carrubo trema nel fumo delle stoppie,
ho dimenticato il passo degli aironi e delle gru
nell’aria dei verdi altipiani
per le terre e i fiumi della Lombardia.
Ma l’uomo grida dovunque la sorte d’una patria.
Più nessuno mi porterà nel Sud.
Oh, il Sud è stanco di trascinare morti
in riva alle paludi di malaria,
è stanco di solitudine, stanco di catene,
è stanco nella sua bocca
delle bestemmie di tutte le razze
che hanno urlato morte con l’eco dei suoi pozzi,
che hanno bevuto il sangue del suo cuore.
Per questo i suoi fanciulli tornano sui monti,
costringono i cavalli sotto coltri di stelle,
mangiano fiori d’acacia lungo le piste
nuovamente rosse, ancora rosse, ancora rosse.
Più nessuno mi porterà nel Sud.
E questa sera carica d’inverno
è ancora nostra, e qui ripeto a te
il mio assurdo contrappunto
di dolcezze e di furori,
un lamento d’amore senza amore.
Salvatore Quasimodo


da “La vita non è sogno”, A. Mondadori Editore, Milano, 1949

Friday, September 4, 2015

Portugal, lâmpada marinha (Neruda)

Pablo Neruda, La lámpara marina, V


Portugal,
vuelve al mar, a tus navíos,
Portugal, vuelve al hombre, al marinero,
vuelve a la tierra tuya, a tu fragancia,
a tu razón libre en el viento,
de nuevo
a la luz matutina
del clavel y la espuma.
Muéstranos tu tesoro,
tus hombres, tus mujeres.
No escondas más tu rostro
de embarcación valiente
puesta en las avanzadas de Océano.
Portugal, navegante,
descubridor de islas,
inventor de pimientas,
descubre el nuevo hombre,
las islas asombradas,
descubre el archipélago en el tiempo.
La súbita
aparición
del pan
sobre la mesa,
la aurora,
tú, descúbrela,
descubridor de auroras.
Cómo es esto?
Cómo puedes negarte
al ciclo de la luz tú que mostraste
caminos a los ciegos?
Tú, dulce y férreo y viejo,
angosto y ancho padre
del horizonte, cómo
puedes cerrar la puerta
a los nuevos racimos
y al viento con estrellas del Oriente?
Proa de Europa, busca
en la corriente
las olas ancestrales,
la marítima barba
de Camoens.
Rompe
las telaranãs
que cubren tu fragrante arboladura,
y entonces
a nosotros los hijos de tus hijos,
aquellos para quienes
descubriste la arena
hasta entonces oscura
de la geografía deslumbrante,
muéstranos que tú puedes
atravesar de nuevo
el nuevo mar oscuro
y descubrir al hombre que ha nacido
en las islas más grandes de la tierra.
Navega, Portugal, la hora
llégó, levanta
tu estatura de proa
y entre las islas y los hombres vuelve
a ser camino.
En esta edad agrega
tu luz, vuelve a ser lámpara:

Wednesday, September 2, 2015

Wednesday, August 26, 2015

Sonetilho hedonista

O hedonismo meu hóbi,
a poesia meu vício,
o coração como lóbi
e o amor desperdício.

Com palavras pequeninas,
influências certeiras
rondam lóbis nas esquinas:
buscam paixões verdadeiras

que de hóbi se disfarcem
para que amor nos pareçam
e por nossos olhares passem
e nunca desapareçam.

É pura mercadoria
no que deu a poesia!







Sunday, August 23, 2015

Verão e memória de Ruy Belo


A angústia que nasce num dia de verão
pode bem ser fugidio nevoeiro
a esvair-se no tempo da sua promessa
e a dizer-nos com força que não temos razão

em duvidar da vida e da nossa presença
junto à terra e ao mar, aqui nestas areias
onde o tempo afinal nem começa nem pensa
e o sol tudo apaga em qualquer estação.

Eu lembro Ruy Belo no final deste verão,
mas a vida larguei aqui por esta praia
e o reencontro fez-se contida paixão
com o verso a fluir e a vida tão escassa...

A angústia que nasce num dia de verão
é do tempo e da terra uma só comunhão.


Monday, August 17, 2015

Sigmaringen,  Galeria Portuguesa

Tinham-lhes prometido Madrid, a Coroa das Espanhas
( príncipes alemães reinavam pela Europa toda...).
Já a irmã Estefânia casara com o rei português,
moço novo, de muitas leituras,
e a ele, Leopoldo de Hohenzollern -Sigmaringen
com sua jovem mulher Antónia de Bragança, a portuguesa,
caberia reinar sobre os espanhóis, com o assentimento das suas Cortes
e a benevolência dos seus generais. Tudo manobrado por Bismarck...

Até que Napoleão III ( como os prussianos previam)
caiu na esparrela e, como mosca alucinada,
entrou na teia urdida por Berlim
opondo-se terminantemente a que um Hohenzollern reinasse em Espanha.
E a Prússia veio assim a ter a guerra que queria,
com o fervor patriótico a mover todos os alemães em sua volta.

Sigmaringen ainda hoje e não mais que duas ruas e uma praça
a volta do castelo.
Para consolar Antónia, Leopoldo construiu então a Galeria Portuguesa,
onde todas as noites se ouvia Schubert
e se recitava Goethe. Antónia passou com melancolia aqueles anos,
marcados pela solidão do castelo, lutos pelo irmão e pela cunhada,
guerras que marcaram a supremacia final da Prússia
sobre as outras Alemanhas...
O marido caçava
pelos montes.

Hitler não se apercebeu certamente da ironia,
quando enxotou Pétain e os seus fantoches
para aquele castelo, a partir do qual Bismarck, noutra época,
começara a tecer a intriga que derrotara os franceses e levantara o Reich!
Eles, pauvres cons, sempre à escuta de Paris,
deambulavam por aquelas galerias, atontados,
d'un château l'autre, com o Céline e a sua cantora,
para medicar e animar aquela gente,
de quem justamente desconfiavam os camponeses do Wurtemberg.

A Galeria Portuguesa abre-se em vidraças sobre o campo alemão,
onde caçavam principes e os camponeses
seguiam o ritmo das estações. Tem a delicadeza de uma dádiva
ao que não pôde ser.











Saturday, August 15, 2015

Ao soneto


És tu soneto um realejo amigo
que me estende da aranha a teia fina
onde este pensamento que persigo
se desfaz só no verso, só na rima?

Serás então do verso falso amigo,
mecanismo voraz e tentador
a destruir no ovo o que consigo,
tornando o pensamento um só rumor?

Se palavras apenas nossos versos
e as ideias ficaram para trás,
que direi dos meus actos, tão diversos
de tudo o que de nós a vida faz?

És tu soneto aranha e sua teia,
um engano desfeito na areia...






Thursday, August 13, 2015

E A POESIA SURGE NA FIGURA DE UMA JOVEM GNR A CAVALO

E A POESIA SURGE NA FIGURA DE UMA JOVEM GNR A CAVALO

Tu ladeavas o cavalo, rindo
da tua tão perfeita novidade.
Qual amazona de um destino findo,
o tempo não mudava a tua idade.

A pistola exibias sobre a coxa
e do meu desejo tua troça ria.
Enredado na lírica mais frouxa,
um soneto pobríssimo eu trazia

só para teu controle e vistoria.
Mas logo se soltou o teu cavalo
para bem longe de mim e da poesia.

E se guardo teu riso enquanto falo
e me digo e desdigo em cada dia,
guarda republicana, em teu cavalo

trouxeste troça feita melodia.  



Wednesday, August 12, 2015

Sem escrita


Transformation
I haven't written a single poem
in months.
I've lived humbly, reading the paper,
pondering the riddle of power
and the reasons for obedience.
I've watched sunsets
(crimson, anxious),
I've heard the birds grow quiet
and night's muteness.
I've seen sunflowers dangling
their heads at dusk, as if a careless hangman
had gone strolling through the gardens.
September's sweet dust gathered
on the windowsill and lizards
hid in the bends of walls.
I've taken long walks,
craving one thing only:
lightning,
transformation,
you.
Adam Zagajewski, Without End, New and selected poems,
Farrar, Straus and Giroux, N.Y., 2002

Monday, July 27, 2015

Todtnauberg 3

TODTNAUBERG 3

O vazio de tudo, antes corria um vento
e sons longínquos davam-nos conta de um acontecer,
fluir magistral do rio sempre pela primeira vez,
o aviso sonoro do corvo
e o caminho a perder-se na montanha.

Vendrá viniendo con venir eterno,
dizia Unamuno.
O mestre não conheceu Unamuno,
porque só há duas línguas decentes para a Filosofia, o grego e o alemão.
E depois só há um povo decente, mas não vamos por aí...

Hannah, Paul, vocês sabem que eu nunca traí.
Nem o Reitorado me deixaram...

TODTNAUBERG 2

TODTNAUBERG 2

Há um campo liso por detrás de todas as montanhas
a lembrar-nos que a beleza conduz ao vazio
e quem não souber glosar este tema
pode sempre patinar por cima de gelo liso,
"paraíso para quem sabe dançar", dizia o outro, o de Sils Maria,
antes de enlouquecer.

O velho não enlouqueceu. Sabedoria manhosa dos camponeses de Bade.
Esperar no dia a dia do sendo o acontecimento do Ser,
virado para a Morte no regaço do Tempo
(em alemão é assim, sempre com maiúsculas) e entretanto mentir,
mentir à mulher, mentir aos alemães, aos nazis, aos americanos
e depois aos franceses e finalmente receber os judeus,
ele "o mestre vindo da Alemanha" a olhar "os teus cabelos negros, Sulamita"
nos caracóis da Hannah Arendt. "Tantos anos" murmurou...

Habitava poeticamente, como dissera do outro de Tubingen,
numa cabana pequena e sem nada de particular,
fechada agora e na posse da família.
Sabedoria dos camponeses
de Bade Wurtenberg...

(citações do poema Fuga da Morte de Paul Celan)




Todtnauberg

TODTNAUBERG

Também eu, aqui. Um grupo de escuteiros
nos caminhos do bosque a pedir boleia
para o grande albergue de juventude no cimo do monte,
donde irradiam marchas a pé boas para a saúde e para a forma. Fitness.
Num abrigo dos Serviços de Turismo da Floresta Negra
um mapa mostra o "Heidegger weg",
alguns quilómetros de marcha contra o esquecimento do Ser
e todos os outros esquecimentos. Fitness.

"Palavras cruas" ouviu o motorista de Celan
e o poema reproduziu desencantados dizeres,
meio ardidos, como palavras decifradas num papel desfeito em cinzas
na lareira de uma longínqua cabana de montanha.

Elfriede tomava conta de todos os passos dele,
sabedora de que a benevolência só conduz à devassidão.
Quando Hannah Arendt chegou, ao fim de todos aqueles anos, ela afastou-se discretamente,
mas fez saber, minuto a minuto, da sua presença na cabana:
ruídos, passos, preparativos domésticos, vozes abafadas...

O velho caminhava por sendeiros
onde hoje só passam escuteiros... 



 






Friday, July 24, 2015

Thursday, July 23, 2015

Alegoria da Europa



Lorenzo Lippi, Allegoria della Simulazione

Tuesday, July 21, 2015

A saída do Euro



Masaccio, Adão e Eva expulsos do Paraíso

Tuesday, July 14, 2015

Rendições honrosas?



Velásquez, La Rendición de Breda

Sophia, hoje

Pranto pelo Dia de Hoje

Nunca choraremos bastante quando vemos 
O gesto criador ser impedido 
Nunca choraremos bastante quando vemos 
Que quem ousa lutar é destruído 
Por troças por insídias por venenos 
E por outras maneiras que sabemos 
Tão sábias tão subtis e tão peritas 
Que nem podem sequer ser bem descritas 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto' 

Monday, July 13, 2015

Sunday, July 12, 2015

Saturday, July 11, 2015

Um poema de Heine sobre a Alemanha



Caspar David Friedrich, Vacas perdidas num mar de gelo


Aber wir verstehn uns baß,
Wir Germanen auf den Haß.
Aus Gemütes Tiefen quillt er,
Deutscher Haß ! Doch riesig schwillt er,
Und mit seinem Gifte füllt er
Schier das Heidelberger Fass

Wednesday, July 8, 2015

Última homenagem a Maria Barroso



Vincent Van Gogh, Rosas Bravas


Floriram por engano as rosas bravas 
No Inverno: veio o vento desfolhá-las... 
Em que cismas, meu bem? Porque me calas 
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!... 
Onde vamos, alheio o pensamento, 
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento 
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve, 
Surda, em triunfo, pétalas, de leve 
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu! 
Quem as esparze — quanta flor! —, do céu, 
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

Camilo Pessanha

(poema lido por José Manuel dos Santos no funeral de Maria Barroso)


          
          

Saturday, July 4, 2015

DE "LES ORIENTALES", Victor Hugo, 1829



Delacroix, Les Massacres de Chio, 1824


Depuis assez longtemps les peuples disaient : « Grèce ! 
Grèce ! Grèce ! tu meurs. Pauvre peuple en détresse,
A l'horizon en feu chaque jour tu décroîs.
En vain, pour te sauver, patrie illustre et chère,
Nous réveillons le prêtre endormi dans sa chaire,
En vain nous mendions une armée à nos rois.

« Mais les rois restent sourds, les chaires sont muettes.
Ton nom n'échauffe ici que des cœurs de poètes.
A la gloire, à la vie on demande tes droits.
A la croix grecque, Hellé, ta valeur se confie.
C'est un peuple qu'on crucifie !
Qu'importe, hélas ! sur quelle croix !

« Tes dieux s'en vont aussi. Parthénon, Propylées,
Murs de Grèce, ossements des villes mutilées,
Vous devenez une arme aux mains des mécréants.
Pour battre ses vaisseaux du haut des Dardanelles,
Chacun de vos débris, ruines solennelles,
Donne un boulet de marbre à leurs canons géants ! »

VICTOR HUGO

Sunday, June 28, 2015

THE GREEK ISLANDS, excerto de DON JUAN, Byron



Byron com o fato nacional grego, pintura do princípio do século XIX

The isles of Greece, the Isles of Greece!
    Where burning Sappho loved and sung,
Where grew the arts of war and peace,
    Where Delos rose, and Phoebus sprung!
Eternal summer gilds them yet,
But all, except their sun, is set.

The Scian and the Teian muse,
    The hero's harp, the lover's lute,
Have found the fame your shores refuse;
    Their place of birth alone is mute
To sounds which echo further west
Than your sires' 'Islands of the Blest.'

The mountains look on Marathon —
    And Marathon looks on the sea;
And musing there an hour alone,
    I dream'd that Greece might still be free;
For standing on the Persians' grave,
I could not deem myself a slave.

A king sate on the rocky brow
    Which looks o'er sea-born Salamis;
And ships, by thousands, lay below,
    And men in nations; — all were his!
He counted them at break of day —
And when the sun set where were they?

And where are they? and where art thou,
    My country? On thy voiceless shore
The heroic lay is tuneless now —
    The heroic bosom beats no more!
And must thy lyre, so long divine,
Degenerate into hands like mine?

'Tis something, in the dearth of fame,
    Though link'd among a fetter'd race,
To feel at least a patriot's shame,
    Even as I sing, suffuse my face;
For what is left the poet here?
For Greeks a blush — for Greece a tear.

Must we but weep o'er days more blest?
    Must we but blush? — Our fathers bled.
Earth! render back from out thy breast
    A remnant of our Spartan dead!
Of the three hundred grant but three,
To make a new Thermopylae!

What, silent still? and silent all?
    Ah! no; — the voices of the dead
Sound like a distant torrent's fall,
    And answer, 'Let one living head,
But one arise, — we come, we come!'
'Tis but the living who are dumb.

In vain — in vain: strike other chords;
    Fill high the cup with Samian wine!
Leave battles to the Turkish hordes,
    And shed the blood of Scio's vine!
Hark! rising to the ignoble call —
How answers each bold Bacchanal!

You have the Pyrrhic dance as yet,
    Where is the Pyrrhic phalanx gone?
Of two such lessons, why forget
    The nobler and the manlier one?
You have the letters Cadmus gave —
Think ye he meant them for a slave?

Fill high the bowl with Samian wine!
    We will not think of themes like these!
It made Anacreon's song divine:
    He served — but served Polycrates —
A tyrant; but our masters then
Were still, at least, our countrymen.

The tyrant of the Chersonese
    Was freedom's best and bravest friend;
That tyrant was Miltiades!
    O! that the present hour would lend
Another despot of the kind!
Such chains as his were sure to bind.

Fill high the bowl with Samian wine!
    On Suli's rock, and Parga's shore,
Exists the remnant of a line
    Such as the Doric mothers bore;
And there, perhaps, some seed is sown,
The Heracleidan blood might own.

Trust not for freedom to the Franks —
    They have a king who buys and sells;
In native swords, and native ranks,
    The only hope of courage dwells;
But Turkish force, and Latin fraud,
Would break your shield, however broad.

Fill high the bowl with Samian wine!
    Our virgins dance beneath the shade —
I see their glorious black eyes shine;
    But gazing on each glowing maid,
My own the burning tear-drop laves,
To think such breasts must suckle slaves

Place me on Sunium's marbled steep,
    Where nothing, save the waves and I,
May hear our mutual murmurs sweep;
    There, swan-like, let me sing and die:
A land of slaves shall ne'er be mine —
Dash down yon cup of Samian wine!
           BYRON



Friday, June 26, 2015

Thursday, June 25, 2015

HOW CLEAR, HOW LOVELY BRIGHT, A. E. Housman



Edvard Munch, Pôr do sol

How Clear, How Lovely Bright

How clear, how lovely bright,
How beautiful to sight
  Those beams of morning play;
How heaven laughs out with glee
Where, like a bird set free,
Up from the eastern sea
  Soars the delightful day.

To-day I shall be strong,
No more shall yield to wrong,
  Shall squander life no more;
Days lost, I know not how,
I shall retrieve them now;
Now I shall keep the vow
  I never kept before.

Ensanguining the skies
How heavily it dies
  Into the west away;
Past touch and sight and sound
Not further to be found,
How hopeless under ground
  Falls the remorseful day.

A. E. HOUSMAN

THE SECOND COMING, William Butler Yeats, "Michael Robartes and the Dancer", 1920



Ticiano, O Rapto de Europa



    THE SECOND COMING
 
    Turning and turning in the widening gyre
    The falcon cannot hear the falconer;
    Things fall apart; the centre cannot hold;
    Mere anarchy is loosed upon the world,
    The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
    The ceremony of innocence is drowned;
    The best lack all conviction, while the worst
    Are full of passionate intensity.
    Surely some revelation is at hand;
    Surely the Second Coming is at hand.
    The Second Coming! Hardly are those words out
    When a vast image out of Spiritus Mundi
    Troubles my sight: a waste of desert sand;
    A shape with lion body and the head of a man,
    A gaze blank and pitiless as the sun,
    Is moving its slow thighs, while all about it
    Wind shadows of the indignant desert birds.
    The darkness drops again but now I know
    That twenty centuries of stony sleep
    Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
    And what rough beast, its hour come round at last,
    Slouches towards Bethlehem to be born?

    WILLIAM BUTLER YEATS

Da MENSAGEM de Fernando Pessoa: A Europa jaz...


Géricault, Le Radeau de la Méduse

          A Europa jaz, posta nos cotovelos:
          De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
          E toldam-lhe românticos cabelos
          Olhos gregos, lembrando.
          
          O cotovelo esquerdo é recuado;
          O direito é em ângulo disposto.
          Aquele diz Itália onde é pousado;
          Este diz Inglaterra onde, afastado,
          
         A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
         Fita, com olhar sphyngico e fatal,
         O Ocidente, futuro do passado.
          
        O rosto com que fita é Portugal.


        FERNANDO PESSOA
 

Sunday, June 21, 2015

De "Papoila e Memória", Paul Celan, 1952, tradução de Fiama Hasse Pais Brandão



Arnold Boecklin, A Praga


RANGER de sapatos de ferro, na cerejeira.
O Verão a ser-te escumado de elmos. O sombrio cuco
pinta com adamantino esporão a sua imagem nos portões do céu.
De cabeça descoberta eleva-se sobre a folhagem o cavaleiro.
No seu escudo ele traz crepuscular teu sorriso,
pregado no sudário de aço do inimigo.
Prometido lhe foi o jardim dos sonhadores
e aprontadas tem lanças, para que a rosa trepe...
Descalço porém vem pelo ar aquele que mais te é semelhante:
com sapatos de ferro afivelados nas afiladas mãos
dorme abolindo a luta e o Verão. Por ele é que a cereja sangra.
"Papoila e Memória"
Tradução Fiama Hasse Pais Brandão,

PAUL CELAN

POEMA DE LOS DONES, Jorge Luis Borges, "El otro, el mismo", 1969




Nadie rebaje a lágrima o reproche
esta declaración de la maestría
de Dios, que con magnífica ironía
me dio a la vez los libros y la noche.

De esta ciudad de libros hizo dueños
a unos ojos sin luz, que sólo pueden
leer en las bibliotecas de los sueños
los insensatos párrafos que ceden

las albas a su afán. En vano el día
les prodiga sus libros infinitos,
arduos como los arduos manuscritos
que perecieron en Alejandría.

De hambre y de sed (narra una historia griega)
muere un rey entre fuentes y jardines;
yo fatigo sin rumbo los confines
de esta alta y honda biblioteca ciega.

Enciclopedias, atlas, el Oriente
y el Occidente, siglos, dinastías,
símbolos, cosmos y cosmogonías
brindan los muros, pero inútilmente.

Lento en mi sombra, la penumbra hueca
exploro con el báculo indeciso,
yo, que me figuraba el Paraíso
bajo la especie de una biblioteca.

Algo, que ciertamente no se nombra
con la palabra azar, rige estas cosas;
otro ya recibió en otras borrosas
tardes los muchos libros y la sombra.

Al errar por las lentas galerías
suelo sentir con vago horror sagrado
que soy el otro, el muerto, que habrá dado
los mismos pasos en los mismos días.

¿Cuál de los dos escribe este poema
de un yo plural y de una sola sombra?
¿Qué importa la palabra que me nombra
si es indiviso y uno el anatema?

Groussac o Borges, miro este querido
mundo que se deforma y que se apaga
en una pálida ceniza vaga
que se parece al sueño y al olvido.

JORGE LUIS BORGES




Monday, June 15, 2015

UM ADEUS PORTUGUÊS, Alexandre O'Neill, "No Reino da Dinamarca" 1958


Nora Mitrani, fotografia de Fernando Lemos


Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

*

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill, 

Sunday, June 7, 2015

O HOMEM DA GUITARRA AZUL, Wallace Stevens, 1937


O velho guitarrista, Picasso, 1903


The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts. The day was green.

They said, “You have a blue guitar,
You do not play things as they are.”

The man replied, “Things as they are
Are changed upon the blue guitar.”

And they said then, “But play, you must,
A tune beyond us, yet ourselves,

A tune upon the blue guitar
Of things exactly as they are.”

II

I cannot bring a world quite round,
Although I patch it as I can.

I sing a hero’s head, large eye
And bearded bronze, but not a man,

Although I patch him as I can
And reach through him almost to man.

If to serenade almost to man
Is to miss, by that, things as they are,

Say that it is the serenade
Of a man that plays a blue guitar.

III

Ah, but to play man number one,
To drive the dagger in his heart,

To lay his brain upon the board
And pick the acrid colors out,

To nail his thought across the door,
Its wings spread wide to rain and snow,

To strike his living hi and ho,
To tick it, tock it, turn it true,

To bang if form a savage blue,
Jangling the metal of the strings…

IV

So that’s life, then: things as they are?
It picks its way on the blue guitar.

A million people on one string?
And all their manner in the thing

And all their manner, right and wrong,
And all their manner, weak and strong?

The feelings crazily, craftily call,
Like a buzzing of flies in the autumn air,

And that’s life, then: things as they are,
This bussing of the blue guitar.
WALLACE STEVENS

ÚLTIMOS AUTO-RETRATOS DE REMBRANDT, Elizabeth Jennings, 1975


Auto-retrato de Rembrandt com 63 anos


Rembrandt's Late Self-Portraits, Elizabeth Jennings 

You are confronted with yourself. Each year
The pouches fill, the skin is uglier.
You give it all unflinchingly. You stare
Into yourself, beyond. Your brush's care
Runs with self-knowledge. Here

Is a humility at one with craft.
There is no arrogance. Pride is apart
From this self-scrutiny. You make light drift
The way you want. Your face is bruised and hurt
But there is still love left.

Love of the art and others. To the last
Experiment went on. You stared beyond
Your age, the times. You also plucked the past
And tempered it. Self-portraits understand,
And old age can divest,

With truthful changes, us of fear of death.
Look, a new anguish. There, the bloated nose,
The sadness and the joy. To paint's to breathe,
And all the darknesses are dared. You chose
What each must reckon with.

Saturday, June 6, 2015

POEMA DO MAIS TRISTE MAIO, Manuel Bandeira, "Estrela da Tarde", 1960

Rembrandt, Auto-retrato na velhice

POEMA DO MAIS TRISTE MAIO
Meus amigos, meus inimigos,
Saibam todos que o velho bardo
Está agora, entre mil perigos,
Comendo, em vez de rosas, cardo.
Acabou-se a idade das rosas!
Das rosas, dos lírios, dos nardos
E outras espécies olorosas:
É chegado o tempo dos cardos.
E passada a sazão das rosas,
Tudo é vil, tudo é sáfio, árduo.
Nas longas horas dolorosas
Pungem fundo as puas do cardo.
As saudades não me consolam.
Antes ferem-me como dardos.
As companhias me desolam
E os versos que me vẽm, vẽm tardos.
Meus amigos, meus inimigos,
Saibam todos que o velho bardo
Está agora, entre mil perigos,
Comendo, em vez de rosas, cardo.
MANUEL BANDEIRA

Tuesday, June 2, 2015

A PRESENÇA, Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", 1994


Matisse, La Danse



Semelhante a som, aproximado a música,
Tu dás os movimentos e encorpas levemente
os corações amados. És em verdade a dança
percutida à superfície e por toda a espessura,
enrugando a terra e dispersando o ar,
marcando sobre as águas a altura da passagem
como um breve alento, um gesto de procura.
E dás calor aos corpos e a vibração da cor
estendendo os climas, direcções, as calmas
do que é mortal e imortal. Para além das sebes
tudo se arredonda, o infinito. Assim o amor dança
na rara frequência: movimento de onda, passagem e presença.


CARLOS POÇAS FALCÃO

Saturday, May 30, 2015

O MITO, Carlos Drummond de Andrade, "A Rosa do Povo", 1945



Di Cavalcanti, Pierrette, 1922

Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.
Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
talvez a linha do busto,
da perna, talvez o ombro.
Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro,menino, choro
Mas Fulana vai se rindo...
Vejam Fulana dançando
No esporte ele está sozinha
No bar, quão acompanhada.
E Fulana diz mistérios,
diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
no entanto sequer me vê.
E sequer nos compreendemos,
É dama de alta fidúcia,
tem latifúndios, iates,
sustenta cinco mil pobres,
Menos eu... que de orgulhoso
me basto pensando nela
Pensando com unha, plasma,
fúria, gilete, desânimo.
Amor tão disparatado,
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
nem vi pela fechadura.
mas eu sei quanto me custa
manter esse gelo digno,
essa indiferença gaia,
e não gritar: Vem, Fulana!
Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
e sua veste arrancando
mostrá-la depois ao povo
tal como é, ou deve ser:
branca, intacta, neutra, rara,
feita de pedra translúcida,
de ausência e ruivos ornatos.
Mas como será Fulana,
digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo,
o meu se punge...Pois sim.
Porque preciso do corpo
para mendigar Fulana,
rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate... Assim não.
Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livros?
Será bicho? Saberei?
Não saberei? Só pegando,
pedindo: Dona, desculpe,
O seu vestido esconde algo?
tem coxas reais? cintura?
Fulana às vezes existe
demais: até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
eis que Fulana me roça.
Olho: não tem mais Fulana.
Povo se rindo de mim.
(Na curva do seu sapato
o calcanhar rosa e puro.)
E eu insonte, pervagando
em ruas de peixe e lágrima
Aos operários: a vistes?
Não, dizem os operários.
Aos boiadeiros: A vistes?
Dizem não os boiadeiros.
Acaso a vistes, doutores?
Mas eles respondem: Não!
Pois é possível? pergunto
aos jornais: todos calados.
Não sabemos se Fulana
passou. De nada sabemos.
E são onze horas da noite,
são onze rodas de chope,
onze vezes dei a volta
de minha sede; e Fulana
talvez dance no cassino
ou, e será mais provável,
talvez beije no Leblon,
talvez se banhe na Cólquida;
talvez se pinte no espelho
do táxi; talvez aplauda
certa peça miserável
num teatro barroco e louco;
talvez cruze a perna e beba,
talvez corte figurinhas,
talvez fume de piteira,
talvez ria, talvez minta.
Esse insuportável riso
de Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
é faca me escavacando.
Me ponho a correr na praia.
Venha o mar! Venham cações!
Que o farol me denuncie!
Que a fortaleza me ataque!
Quero morrer sufocado,
quero das mortes a hedionda,
quero voltar repelido
pela salsugem do largo,
já sem cabeça e sem perna,
à porta do apartamento,
para feder: de propósito,
somente para Fulana.
E Fulana apelará
para os frascos de perfume.
Abre-os todos: mas de todos
eu salto, e ofendo, e sujo.
E Fulana correrá
(nem se cobriu; vai chispando)
talvez se atire lá do alto.
Seu grito é: socorro! e deus.
Mas não quero nada disso.
Para que chatear Fulana?
Pancada na sua nuca
na minha é que vai doer.
E daí não sou criança.
Fulana estuda meu rosto.
Coitado: de raça branca.
Tadinho: tinha gravata.
Já morto, me quererá?
Esconjuro se é necrófila...
Fulana é vida, ama as flores,
as artérias e as debêntures.
Sei que jamais me perdoara
matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes,
couraçados, invasores.
Fulana é toda dinâmica,
tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
seus beijos refrigerados,
desinfetados, gravados
em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós.
Sou eu, o poeta precário
que fez de Fulana um mito,
nutrindo-me de Petrarca,
Ronsard, Camões e Capim;
Que a sei embebida em leite,
carne, tomate, ginástica,
e lhe colo metafísicas,
enigmas, causas primeiras.
Mas, se tentasse construir
outra Fulana que não
essa de burguês sorriso
e de tão burro esplendor?
Mudo-lhe o nome; recorto-lhe
um traje de transparência;
já perde a carência humana;
e bato-a; de tirar sangue.
E lhe dou todas as faces
de meu sonho que especula;
e abolimos a cidade
já sem peso e nitidez.
E vadeamos a ciência,
mar de hipóteses. A lua
fica sendo nosso esquema
de um território mais justo.
E colocamos os dados
de um mundo sem classes e imposto;
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.
E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulana, abrasados,
queremos... que mais queremos?
E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.
(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos.)
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE