Sunday, January 25, 2015

Saturday, January 24, 2015

Outro Ulisses volta a casa


Cidades que nunca atravessei, nomes que ressoam da infância,
Samarcanda, Trebizonda, cidades que nunca vi,
promessas por cumprir de um atlas folheado na infância,
noutro século, num outro século.

Cidades como casas desfeitas,
caixotes abertos no chão, gavetas por esvaziar,
livros que sempre sobram.
É fácil resumir uma vida.
O que dela ficará, não sabemos. Mais certamente
nada.

Ficam as palavras encontradas num velho atlas:
Samarcanda, Trebizonda.
Um dia. Um dia estarei lá.

Friday, January 23, 2015

Em memória de Miguel Galvão Teles

A primeira vez que o encontrei, tinha eu quinze anos, foi em 1966. Com o meu tio João, víamos na companhia do Miguel Galvão Teles (a mais brilhante inteligência jurídica que eu conheci, disse-me uma vez o meu tio), pela televisão a preto e branco, o lendário Portugal - Coreia do Norte. Com o espanto de alguém que nunca soube entender até ao fim a paixão do futebol (não é, Miguel Castro Mendes?) , eu vi aquela brilhante mente jurídica atirar-se ao chão e bater com as mãos no soalho, na euforia plena dos golos de Eusébio. Foi meu professor de Direito Constitucional, encontrámos-nos na política nos anos de brasa do PREC, amigos sempre. Hoje, ao saber que partiu, lembro a pura alegria desse jogar-se sobre o chão em festejo do golo do Eusébio, como uma manifestação dessa alegria que, diz Espinoza, "aumenta a potência da alma", e que está, tem de estar, sempre por detrás de uma grande, de uma insaciável inteligência.

Wednesday, January 21, 2015

Mudança



Notre Mouvement
Nous vivons dans l'oubli de nos métamorphoses
Le jour est paresseux mais la nuit est active
Un bol d'air à midi la nuit le filtre et l'use
La nuit ne laisse pas de poussière sur nous
Mais cet écho qui roule tout le long du jour
Cet écho hors du temps d'angoisse ou de caresses
Cet enchaînement brut des mondes insipides
Et des mondes sensibles son soleil est double
Sommes-nous près ou loin de notre conscience
Où sont nos bornes nos racines notre but
Le long plaisir pourtant de nos métamorphoses
Squelettes s'animant dans les murs pourrissants
Les rendez-vous donnés aux formes insensées
À la chair ingénieuse aux aveugles voyants
Les rendez-vous donnés par la face au profil
Par la souffrance à la santé par la lumière
À la forêt par la montagne à la vallée
Par la mine à la fleur par la perle au soleil
Nous sommes corps à corps nous sommes terre à terre
Nous naissons de partout nous sommes sans limites
PAUL ÉLUARD
in Le dur désir de durer, 1946, Œuvres complètes t.II © Gallimard, La Pléiade, p.83

Tuesday, January 20, 2015

Recomeçar



Bom dia, depressão de um dia de neve
e do reencontro com as antigas ilusões.
Bom dia, camarada vida, a esperança dispersa-se
em pequenas luzes bruxuleantes, trémulas como pirilampos,
à beira de uma noite que vem por trás de todas as noites.
Bom dia, palavras.

Sunday, January 11, 2015

Poema para este dia


    THE SECOND COMING
   
    Turning and turning in the widening gyre
    The falcon cannot hear the falconer;
    Things fall apart; the centre cannot hold;
    Mere anarchy is loosed upon the world,
    The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
    The ceremony of innocence is drowned;
    The best lack all conviction, while the worst
    Are full of passionate intensity.
 
    Surely some revelation is at hand;
    Surely the Second Coming is at hand.
    The Second Coming! Hardly are those words out
    When a vast image out of Spiritus Mundi
    Troubles my sight: a waste of desert sand;
    A shape with lion body and the head of a man,
    A gaze blank and pitiless as the sun,
    Is moving its slow thighs, while all about it
    Wind shadows of the indignant desert birds.
   
    The darkness drops again but now I know
    That twenty centuries of stony sleep
    Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
    And what rough beast, its hour come round at last,
    Slouches towards Bethlehem to be born?

   WILLIAM BUTLER YEATS

Saturday, January 10, 2015

Caixadóclos


- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
- Que és o esticalarica que se vê.

- Público em geral, acaso o meu nome...
- Vai mas é vender banha da cobra!

- Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
- Este é dos que fala sozinho na rua...

- Campdòrique, então, não dizes nada?
- Ai tão silvatávares que ele vem hoje!

- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
- É o do terceiro, nunca tem dinheiro...

- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...
- Dos dois ou três nomes que o surrealismo...

- Ah, agora sim, fazem-me justiça!

- Olha o caixadóclos todo satisfeito
a ler as notícias...


Alexandre O'Neill
Feira Cabisbaixa

Um bocadinho assim...


Ni vu ni connu
Je suis le parfum
Vivant et défunt
Dans le vent venu !

Ni vu ni connu,
Hasard ou génie ?
À peine venu
La tâche est finie !

Ni lu ni compris ?
Aux meilleurs esprits
Que d'erreurs promises !

Ni vu ni connu,
Le temps d'un sein nu
Entre deux chemises !


PAUL VALÉRY

Wednesday, January 7, 2015

Charlie


Recados

O MEU PRIMEIRO LIVRO

(publicado no JL de 7 de Janeiro de 2014)



Eu andava de roda da poesia desde os meus quinze anos. Publiquei poemas no Diário de Lisboa-Juvenil (eu e muita gente, seria interessante voltar agora a publicar uma mostra desses poemas adolescentes de tantas e tão diversas pessoas...), e ali fui acolhido pela hospitaleira amizade do Mário Castrim e da Alice Vieira.

Continuei sempre a escrever, através de todas as mudanças e andanças da minha vida, passada que foi a Revolução de Abril, iniciada já a minha carreira diplomática. Mas só com trinta e três anos é que finalmente julguei digno de poder ser publicado um livrinho meu de poemas, a que chamei Recados.

Era em 1983, estava eu então colocado em Madrid e pedi ao José António Llardent, um bom amigo já falecido, grande tradutor de Fernando Pessoa para castelhano, que me lesse e julgasse o texto. O José António achou-o publicável. Senti-me aprovado. Procurei então, em Lisboa, um editor.

Depois de o Joaquim Manuel Magalhães ter recusado liminarmente a  sua publicação na editora “A Regra do Jogo”, dirigi-me a medo com o meu manuscrito (não havia internet nesse tempo) à Imprensa Nacional, onde o Vasco Graça Moura dirigia uma colecção para estreantes, que se chamava “Plural”.

Era a primeira vez que via o Vasco. Ele leu o texto e, para meu grande alívio e a bem da minha ansiedade, deu o seu acordo. Para a execução da edição (que era feita por uma editora portuense chamada “Gota de Água”), tive de ir ao Porto, cidade que me era então pouco familiar e onde me senti desde logo muito bem.

Não houve lançamento público. Tive, aqui no JL, uma crítica entusiástica de Eduardo Prado Coelho ao meu primeiro livro, que muito me sensibilizou e estimulou. Mas este livro, mais tarde, em 1999, não foi incluído nos meus Poemas Reunidos, editados pela Quetzal, e isso por minha escolha e exclusiva responsabilidade. Merecê-lo-ia? Terei feito bem? Porque o enjeitei, afinal?

Mas não vale a pena sentir qualquer remorso:  de qualquer modo, a Quetzal já guilhotinou (ah ça ira, ça ira, ça ira...) todos os exemplares que restavam desses meus Poemas Reunidos...

Thursday, January 1, 2015

Que seja assim o Ano Novo...

— De sua formosura
deixai-me que diga:
É tão belo como um sim
numa sala negativa.

— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.

— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.

— É belo porque com o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.


(João Cabral de Melo Neto, "Morte e vida severina, auto de natal pernambucano")