Saturday, February 27, 2010

A Medusa Índia (2)


Quando eu cheguei a ti, era tão tarde:
o mundo meio percorrido, a tua estranheza longe
das minhas interrogações...

Agora és a minha obsessão,
o enigma que eu não consigo decifrar,
a Esfinge que está entre mim e essa parte de mim
que passou a pertencer-te,
todas as perguntas para que não tenho resposta.

Medusa,
só de olhar para ti
as palavras secam
no seu deserto...

Calcutá : alguém que sente como eu



(...) And yet I find that for some initially inexpressible reason, I cannot stop feeling an intense fondness for the place
(Calcutá), and I still puzzle over exactly why that might be.

Simon Winchester, Calcutta, Lonely Planet, 2004


Da desgraça de ser latino, católico e moreno...



Lord Megnad Desai é um eminente académico indiano (nascido no Gujarate), que, depois de uma brilhante carreira nos Estados Unidos e na Inglaterra, se tornou cidadão britânico, político trabalhista e actualmente membro da Câmara dos Lordes. Tem uma casa de férias em Goa, reconhece com lucidez (o que não é frequente) a identidade própria dos goeses e aquilo a que chama a "dificuldade de integração" de Goa na narrativa nacionalista indiana, mas a sua opinião dos portugueses não é brilhante:

The Portuguese Empire lasted twice as long as the British in India, but the modernizing effects of the latter were sadly missing in the former. This is because the Enlightenment did not affect the Catholic kingdoms of Iberia the way it did Britain and France. Even among imperialisms there are differences.

Dito de outra maneira, a civilização acaba nos Pirinéus, como finamente notava um autor francês do século XVIII...

No Brasil, nos anos 40 e 50, autores como Sérgio Buarque de Hollanda, Vianna Moog e Raymundo Faoro consideravam a colonização ibérica a raiz das desgraças e atrasos da América Latina e da sua inferioridade face aos norte-americanos, brancos, anglo-saxões e protestantes...

E hoje somos PIGS...

Friday, February 26, 2010

Calcutá

Sensação de que esta é a minha cidade na Índia : a mais culta e a mais determinada, a mais aristocrata e a mais miserável, sobretudo aquela que menos se importa connosco . Que nos não quer seduzir nem atrair.

Invenção minha?

Ainda o Oberoi de Calcutá

É rigorosamente proibida qualquer gorjeta; cobram a internet exactamente pelo nosso tempo de utilização, sem extrapolações. As malas chegam ao quarto em dois minutos.

Não há sorrisos nem lisonjas : só o essencial da cortesia.

Estamos na Índia?

Thursday, February 25, 2010

Calcutá : I like it here

É-nos familiar esta frieza de Calcutá : estamos longe da exuberante e barroca hospitalidade indiana! Somos tratados no Oberoi como num hotel de Paris ou de Berlim - com uma polida e burocrática indiferença, sem "namastés" nem grinaldas de flores...

Estamos em casa. Algo de profundamente europeu se misturou aqui com a Índia - não já a latinidade de Goa, mas o desencantamento do Mundo trazido pela nossa modernidade...

Compreendo agora Ashis Nandy quando ele diz que o Brahmo Saj (o movimento religioso de sincretismo ocidental - oriental aqui fundado e cujo prosélito mais eminente foi Tagore) abriu o caminho ao secularismo e ao distanciamento do religioso por parte da élite indiana... Eu visitei aqui o templo de Ramakrishna e li os textos de Vivekananda : é uma religiosidade diluída e baça, tão longe do som e da fúria de Benarés! Mas ao contrário de Ashis Nandy, eu gosto mesmo disto. Porque aqui nasceu a Índia moderna. Mesmo que nos tratem nos hotéis com esta indiferença gelada que é apanágio e glória do nosso laicismo. I like it here...

Tuesday, February 23, 2010

Canções do exílio : Brasil



É o mais difícil para mim.
Como falar de quem amamos por nos não amar
quando mais nos ama?
Nunca saímos dessa encabulação,
antes de uma boa gargalhada, de um chope ou de uma cachaça:
antes de chegarmos a entender que rir é toda a metafísica em acto.



"Conversa à beira do Ganges"

"A morte faz parte da vida
e espera-nos, com o sorriso aberto" ;
mas isso, meu caro amigo, não precisava de vir aprender à Índia:
você leu esse poema no Rilke, não leu?


Reparou na festa com que atiramos os deuses para o rio?
Morrer é passar a curva da estrada, mas reincarnar não é a perfeição,
é continuar a aventura sem fim do karma. Por isso
morrer no Ganges (dizem) pode ser a libertação.
E assim não serás reincarnado. Bom golpe!


O seu Deus incarnou só uma vez, não foi?
Pouca coisa, para os nossos padrões...
É certo que os nossos deuses não pretendem
redimir a Humanidade,
mas prestam aqueles serviços humanos que vocês passaram para os santos
e acreditem que isso vale muito mais para o homem comum
do que a grandeza da vossa Redenção!


Bebi demais, sweetie? O nosso amigo português
acompanha-nos com vinho... One for the road!

Monday, February 22, 2010

Uma infância em Deli (2)



E os portugueses, sabes,
eram aquela imagem de um homem de barbas compridas
com um chapéu bicudo,
que abria no nosso manual de História o capítulo chamado
"A era de Gama".

(Já não está na moda!)


Uma infância em Deli



E de noite sentíamos a respiração do deserto,
os lençóis molhados sobre os nossos corpos,
deitados no chão do terraço da casa nova.

Ouvíamos chacais.
Mas muito longe.

Momento

Em momentos assim é mais difícil:

não dá para disfarçar o peso do mundo.

A angústia enrola-se na garganta como um agasalho usado,

e há toda uma vida (que pretensão!) a clamar por dentro

"porque me abandonaste?".

Em momentos assim é mais difícil

fingir que só se está a escrever um poema.

Sunday, February 21, 2010

Opiário ou o Sentimento de um Desoriental...

( ... )

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?


( ... )


Pertenço a um gênero de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Se ao menos eu por fora fosse tão

Interessante como sou por dentro!

Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.

Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a ...


( ... )



Do Senhor Engenheiro Álvaro de Campos, de regresso da Índia

1498: Modernidade do Samorim

Não causou estranheza ao Samorim que o Gama usasse com ele o verbo "descobrir":
tinham menos sensibilidade colonial aqueles reis
e o "olhar antropológico" era para eles uma questão de mercado.


É verdade que o verdadeiro mundo colonial só veio depois.
Subrahmanyam estranha que o Samorim tenha deixado o Gama dizer
que viera "descobrir" aquelas terras, de todos conhecidas,
e insinua confusão dos tradutores árabes.


Mas o Samorim pensava
que estava tanto a descobrir aquela gente como a nossa gente
o estava a descobrir a ele.
O comércio tinha que crescer
e a concorrência era proveitosa.
Não era nem um combatente da liberdade nem um leal colonizado:
era o Samorim!



Damão : aproveitamentos políticos...

Já o ter dançado o Malhão, Malhão, na companhia do deputado do BJP por Damão, pode ter constituído um óbvio aproveitamento político, uma forma deste partido hindu radical mostrar a sua amizade pelo eleitorado católico e indo-português; mas a prontidão com que o representante do Partido do Congresso em Damão se veio juntar a nós no palanque, mostrou que o adversário político está atento e cultiva o mesmo eleitorado...

Difícil será dizer qual de nós três dançou melhor ... e as gargalhadas subsequentes do público não foram um indicador suficientemente claro neste sentido!

Calicute, 512 anos depois...

Se Vasco da Gama veio encontrar em Calicute a benevolência (algo condescendente) dos hindus e a hostilidade compreensível dos muçulmanos, este modesto representante da soberania portuguesa, 512 anos depois, foi convidado de honra da cerimónia de inauguração da reconstruída Catedral de Calicute (obra financiada, por certo, pela Fundação Calouste Gulbenkian ...), na presença, além naturalmente do Arcebispo e dos Bispos da Igreja Católica local, do Samudri Raja, descendente directo do Samorim (de profissão professor, sendo proprietário e director do melhor colégio privado da cidade), do líder religioso muçulmano e do deputado do Partido do Congresso (hindu). As religiões unidas - porém...

Não cometi qualquer ingerência na vida política local, mas a ausência na cerimónia de qualquer autoridade estadual ou municipal do Partido Comunista (que governa o estado do Kerala) pareceu-me significar um aproveitamento político do evento (de que ninguém, obviamente, me falou nem me fez qualquer referência) por parte da recente aliança política cristã - muçulmana - Partido do Congresso (o BJP praticamente não existe no Kerala) contra os comunistas, que há vinte anos governam o Kerala (com as melhores taxas de literacia e mortalidade infantil da Índia, mas com graves carências no investimento).

O resultado eleitoral das legislativas gerais , que pouco tempo antes tinham tido lugar, constituíra de facto uma pesadíssima derrota para o PC do Kerala; mas até às próximas eleições estaduais, o governo comunista continuará a exercer o poder no estado com toda a legitimidade...

Não foi só Vasco da Gama que se viu metido no meio de conflitos locais ... com a diferença que, estando nós aqui numa democracia, a minha neutralidade diplomática saíu perfeitamente limpa e isenta e os aproveitamentos políticos subsequentes ficarão para quem os fizer!

Saturday, February 20, 2010

Aos leitores, se houver...

É muito tarde; gostava de saber
qual é o livro que quero que aconteça.
Alguma vez o sabemos de antemão?

O trabalho sobre o acontecimento,
a atitude séria de pensar
vão esbarrar nas vozes múltiplas, nos atalhos improváveis,
nas falas entrecortadas,
nos caminhos que cortam outros caminhos,
nisto que em toda a parte nos solicita e efabula.

Não tereis a Índia pensada
nem sequer sonhada:
lendas da Índia, eu vos disse.
Lembrança e memória
dos bens e males passados.


Lendas da Índia

A ideia de trabalhar num livro a partir das notas, artigos e poemas publicados neste blog tem sempre permanecido enquanto horizonte de possibilidade, que deu talvez alguma consistência ao que aqui se foi escrevendo.
Octavio Paz, sabedor fino e profundo das coisas da Índia, intitulou o seu livro Vislumbres de la India : Vislumbrar: atisbar, columbrar, distinguir apenas, entrever. Vislumbres : realidades percibidas entre la luz y la sombra - explica e define. Essa Índia que entrevemos de luzes e de sombras é a mesma que se nos dirige, assertiva e barroca, floreada e dialéctica, nos mercados de rua ou nos mais sofisticados debates académicos?
E será esta Índia política a mesma que o nosso ressabiado goês anti-brâmane Moniz Barreto descrevia em 1888 como dotada de essa faculdade superior, que é a essência do génio político, isto é, o dom de ver num relance um coração inteiro e muitos corações com seus vícios e virtudes, forças e fraquezas, e o partido que pode tirar de cada um destes elementos uma inteligência habituada a servir-se das almas como das peças de uma máquina?
É uma ousadia escrever sobre a Índia. Mas não será sempre uma ousadia impensável o acto de escrever?
Um poeta de língua telugu (aqui traduzido para inglês) não teve dúvida em responder:
Blank white paper
is more important
than what I write now.
My poetry
is in the white spaces between the words.
(Nara, pseudónimo de Velcheru Narayana Rao, nascido em 1932, autor de When God is a Customer, publicado em 1994)
Mas sem pretender a plenitude em branco do papel (ou da tela do computador) que la blancheur défend, como igualmente dizia Mallarmé, sente quem aqui escreve (e sentirá quem lê?) a necessidade de organizar este material. Mas mais do que organizar : de desenvolver observações, de afinar descrições e, sobretudo, de não ter medo de pensar.
Por isso não teremos vislumbres, como na inteligência poética de Paz, mas lendas, como na narrativa do nosso Gaspar Correia : Nenhuma cousa desta vida humana he tão aproueitiuel aos viuentes que lembrança e memoria dos bens e males passados (Aos Senhores Letores, Lendas da Índia).
De lembrança e de memória de bens e de males se há-de fazer esse livro que virá... Virá?

Descobri este poema!

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.

(Fabrício Carpinejar, Terceira Sede, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2009)

Friday, February 19, 2010

Canções do exílio : Hungria

SVÁBHEGY

Quando subia a montanha dos suábios,
em Budapeste,
lembrava-me sempre de Karinthy, internado neste sanatório,
nos anos 30,
de Eichmann, instalado aqui num muito peculiar escritório,
nos anos 40,
da casa para os convidados do Governo e do Partido Comunista,
para a qual, já nos anos finais do comunismo,
ninguém mais queria ser convidado;
e do grande hotel austro-húngaro que albergou tudo isto,
não teve culpa de nada
e finalmente foi destruído pela execração do povo!

Há quem tenha mais História do que pode consumir,
dizia Churchill.

Thursday, February 18, 2010

O paradoxo do viajante

Penso nos lugares aonde não mais voltarei:
não para dizer que neles se encerrou
o que deles ou através deles eu poderia ter sido.
Apenas para lembrar
que nunca lhes poderei dizer adeus.

Sunday, February 14, 2010

A pira

Desaparecer,
como a nuvem se desfaz
por dentro do arco celeste,
sumir,
como o verme se mistura
no meio da terra,
dissolver-me,
como pó caído na água.

E só depois
o lume.



Thursday, February 11, 2010

Meditação pós colonial

Do excelente livro de Isabela Figueiredo, Caderno de Memórias Coloniais (a ler, absolutamente) :

Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar.

Wednesday, February 10, 2010

Saldo do dia


Saldo do dia, o poema:
o deve e o haver, o peso, o custo
e tudo o mais que não fica na memória.

É no meio da noite
e dos improváveis sonhos.

Tuesday, February 9, 2010

A Medusa Índia

Três anos a conviver contigo
e nunca chegarei a entender-te!
Falas pelos cotovelos, de tudo e de nada
fazes um discurso, uma prece ou um negócio.
As tuas guerras íntimas são públicas
e discutidas nas praças e nos mercados.
E nunca chegarei a entender-te!

Como é ser misterioso sem ser misterioso?
Como é ser inacessível sem ser recatado?
Quem te sonhaste não está cercado de grandes muros:
os muros ruíram, porque estão agora a construir
auto-estradas; mas nunca chegarei a entender-te!

Talvez porque te sonhaste muito, em muitas pessoas
e em muitos lugares.
Os avatares estão para os heterónimos
como a energia atómica está para o lume da candeia!
E os teus trezentos milhões de deuses saúdam-nos
com o riso que te cria a cada momento
e a nós nos imobiliza.

Medusa!

Monday, February 8, 2010

Noite impassível


Pouca realidade nos cerca de noite,
quando todos se calam à nossa volta
e as coisas se acomodam no escuro, como se fosse o seu natural.

E nós, que deixámos toda a espantosa realidade do mundo
amassar-nos até aos ossos,
olhamos para a noite com a estranheza
de não podermos mais ser nós próprios.

Somos blocos de plasticina entregues a mãos infantis
e cruéis.

Sunday, February 7, 2010

J. D. Salinger (1919 - 2010)

"There is a marvellous peace in not publishing"

Thursday, February 4, 2010

Manhã em Benarés


É sempre longe da margem de cá
e das nossas construções precárias
que se passa a verdadeira vida:
ali onde se troca a moeda da morte
ou simplesmente se escuta a voz grave
do barqueiro
a anunciar-nos o destino.

Mas nós ficamos na margem,
teimosamente do lado de cá.
Não nos despedimos da vida:
ela nos busca
e nos troca, se quiser.


Wednesday, February 3, 2010

"Viver é mais que atravessar um campo" (Pasternak)


Como eu teria amado o silêncio do mundo
se sobre ele permanecesse a marca dos teus passos.

Só este resto de neve ainda fala de nós,
como se viver fosse apenas atravessar este campo

sem mais nada no fim.