Wednesday, April 30, 2014

Um grande poema, para a educação do Senhor Kappus

AMOR CONSTANTE MÁS ALLÁ DE LA MUERTE

Cerrar podrá mis ojos la postrera
sombra, que me llevare el blanco día,
y podrá desatar esta alma mía
hora, a su afán ansioso linsojera;

mas no de esotra parte en la ribera
dejará la memoria en donde ardía;
nadar sabe mi llama la agua fría,
y perder el respeto a ley severa;

Alma a quien todo un Dios prisión ha sido,
venas que humor a tanto fuego han dado,
médulas que han gloriosamente ardido,

su cuerpo dejarán, no su cuidado;
serán ceniza, mas tendrán sentido.
Polvo serán, mas polvo enamorado.

FRANCISCO DE QUEVEDO  (1580 - 1645)

Poesia de guerra

Sentiu a minha falta, Senhor Poeta?
Os meus deveres militares nem sempre permitem
que eu faça destas conversas o eixo da minha vida.
Nunca conseguiria ser um verdadeiro poeta sem qualidades
ou sem atributos, eu sou um militar, Senhor Poeta.
Bem sei que a Poesia é também um estado de guerra
(e eu dou-lhe a maiúscula porque sou oficial),
mas compreenda que agora, com o que se passa na Crimeia…

Essa tagarelice oca, Senhor Kappus, quer esconder qualquer coisa,
qualquer experiência de dor ou de graça, de agonia ou de esplendor,
que o senhor sente que ainda é cedo para poder entender,
quanto mais mencionar. Não se envergonhe;
ou então envergonhe-se, mas não diga tolices.
O primeiro poema foi o da Guerra de Tróia
e a morte de Heitor era um assunto bem mais poético,
bem mais perto do coração dos homens,
do que as extravagâncias de Helena ou as seduções de Páris.
A poesia (com minúscula, que eu não sou militar)
é para o coração dos outros,
mas não para o seu espectáculo.
É guerra, sim, mas guerra prolongada.

Tuesday, April 29, 2014

A teimosia da História


Vasily Surikov, A Prisão da Mulher do Boiardo Morozov  (1887)

Sunday, April 27, 2014

A Morte, o Espaço, a Eternidade (Jorge de Sena)

A Morte, O Espaço, A Eternidade
(ao José Blanc de Portugal, em memória de um seu ente querido, que eu muito estimava.) 
De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.
A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.
Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?
E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.
Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.
O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.
E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.
Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.
Assis, 1 de Abril de 1961, sábado de Aleluia

Uma visita de Vasco Graça Moura a este blog, em 2009


Tiracol, Goa, março de 2009

O poema que o Vasco nos mandou, então:

 vi o autor em tiracol
 com a guida a tiracolo 
 estava um dia de sol 
 bebiam um café solo

 o blogue é muito denso
 tem poemas e sequelas
 e é por isso que penso
 lê-lo com tempo em bruxelas 

 e enquanto isto se promete 
 e o tempo não stá ruim 
 para o timtim no tibete 
 vão abraços de almeirim. 

 Vasco

Dos amigos que nos levaram

Que sont mes amis devenus
Que j'avais de si près tenus
Et tant aimés
Ils ont été trop clairsemés
Je crois le vent les a ôtés
L'amour est morte
Ce sont amis que vent me porte
Et il ventait devant ma porte
Les emporta


(Rutebeuf)

Ao Vasco Graça Moura

soneto do amor e da mortequando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer 
fica junto de mim, não queiras ver 
as aves pardas do anoitecer 
a revoar na minha solidão. 

quando eu morrer segura a minha mão, 
põe os olhos nos meus se puder ser, 
se inda neles a luz esmorecer, 
e diz do nosso amor como se não 

tivesse de acabar, sempre a doer, 
sempre a doer de tanta perfeição 
que ao deixar de bater-me o coração 
fique por nós o teu inda a bater, 
quando eu morrer segura a minha mão. 

Vasco Graça Moura

Saturday, April 26, 2014

O Senhor Kappus e o 25 de abril

Face às grandes emoções colectivas, Senhor Kappus,
verá que jamais se conseguirá libertar dessa distância
que o comércio com as palavras levantou entre si
e a retórica das proclamações.
Não é um mal nem um bem, repare:
tal não o inibirá de desfilar com os outros,
de cantar a plenos pulmões cantigas como armas
e de continuar a conspirar em sótãos
através das idades. Não.
Apenas uma surda e irónica distância
entre si e as palavras
o fará suspender por vezes a sua convicção
e vaguear os seus olhos por todas as coisas da terra.
Por uma vez sem exemplo, Senhor Kappus,
deixo-o hoje com a citação
de um poema inteiro:

Com fúria e raiva acuso o demagogo 
E o seu capitalismo das palavras 

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada 
Que de longe muito longe um povo a trouxe 
E nela pôs sua alma confiada 

De longe muito longe desde o início 
O homem soube de si pela palavra 
E nomeou a pedra a flor a água 
E tudo emergiu porque ele disse 

Com fúria e raiva acuso o demagogo 
Que se promove à sombra da palavra 
E da palavra faz poder e jogo 
E transforma as palavras em moeda 
Como se fez com o trigo e com a terra 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"

Friday, April 25, 2014

1974

O Captain, my captain


But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.


WALT WHITMAN


25 de abril de 2014

Sunday, April 20, 2014

Poesia e diplomacia: Tiago Araujo

O meu jovem colega diplomata Tiago Araújo, colocado em Londres e de mudança em breve para Viena, é autor de vários livros de poesia. O seu último livro, "Respirar debaixo de água" (Averno, 2013) acaba de ser objecto, esta semana, de uma elogiosa recensão do "Público". Fica aqui um poema desse livro, com um abraço ao Tiago Araújo.

a vida das marionetas termina aqui
onde a mão hábil desenlaça nós de gravata
ao fim da tarde.
depois outra máscara substituirá essa máscara
igualmente verdadeira.
a personalidade, como a roupa, adequada a cada
circunstância, a cada grupo de pessoas
nos dias que recuam e regressam sem
rebentação, durante muito tempo
escrevi o diário no teu corpo, nada
de relevante existe para além dele, apenas
alguma falta de tempo e duas ou três crianças
a correr em volta de outro corpo
treinado para o ilusionismo.
agora, ao fim da noite, com os quartos povoados por
vultos destroçados num sono profundo,
já não interessa quem sou ou os jogos que invento
para ganhar tempo e me manter acordado.








Saturday, April 19, 2014

Uma homenagem ao Mário Quartin Graça, que acabamos de perder: uma visita dele em tempos a este blog

SUNDAY, OCTOBER 27, 2013


Da poesia como papança: resposta a António Dias e homenagem ao poeta Conde de Monsaraz



RESPOSTA A ANTONIO DIAS DA PARTE DAS VITIMAS DA FOME

Poetas comilões, António Dias,
são mato nesta mata esfomeada:
alguns papam almoços sem azias
e jantam prémios feitos à molhada.

Papança (belo nome) fez receitas
em verso bem medido e bem lançado.
Esquecemos Bulhão Pato e as perfeitas
amêijoas que devemos ao seu fado.

Poetas são pessoas de alimento,
dêem-nos de comer, façam favor!
Não cortem a raiz ao pensamento,
que a comer ganha asas o amor.

3 COMMENTS:

  1. Um soneto recebido do Mário Quartin Graca:

    Para o povo ser poeta e
    Andar nas nuvens, nefelibata,
    Fumar ópio ou cheirar rape,
    Viver do nada, vida barata.

    Viver, viver, sem saber de que,
    Sem que a porta sequer lhe bata
    Quem uma côdea de pão lhe de
    A quem a sorte tao mal trata.

    Mas, afinal, como isso e vão!
    E como e grande essa ilusão!
    Porque a imagem do poeta

    Esconde, guloso e comilão,
    Um voraz brutamontes que nao
    E etéreo, delicado esteta.

    Mário Quartin Graca

  2. Lamento que entre Lisboa e Estrasburgo quase todos os acentos agudos e todos os circunflexos se tenham evaporado. Resta confiar na perspicácia dos leitores para que possam apreciar a "qualidade" desta obra poética. MQG
  3. Isto agora com os cortes, resolvemos cortar nos acentos...

Últimas notícias


Deixam-nos o sal
e até (quem sabe?) o açúcar.
O fluxo do nosso sangue irá ser regulamentado
até ter cabimentação orçamental
e a intensidade das nossas emoções
não poderá ultrapassar um limiar
a ser definido por portaria.
O novo triunfa do velho!

Thursday, April 17, 2014

Resmungos à noite

O sono, esse estado de irritação ténue
entre a vida e o sonho,
essa lâmina romba no fio da navalha,
esta minha consciência intermitente de uma vaga revolta,
por entre as notícias matraqueadas na televisão
e o livro paulatinamente abandonado
à sua circulação romanesca, demasiado histérica
para minimamente me prender. Sou um mau leitor,
agarro-me aos versos, mesmo os que se ufanam
de não ter qualidades, recensões em cheio, estrelas
no guia Michelin, os herdeiros dos herdeiros dos herdeiros.
É só a poesia que me prende, mesmo a daqueles
que usam a própria irrisão como coroa de louros
e o seu proclamado ódio da poesia
como mal disfarçada cauda de pavão.
E ainda assim, é do lado deles
que estou.

Gabriel Garcia Marquez em Portugal, 1975

Gabo tinha chegado a Lisboa depois de um voo atribulado. «Ele tinha um medo danado de viajar de avião, até chegou a escrever uma crónica sobre o assunto», conta Jaime García Márquez, irmão do escritor, no alto de um terraço com vista para a catedral de Cartagena de Índias. Está um dia quente e húmido, como são todos os dias na cidade caribenha. O escritor mora parte do ano ali perto, numa casa de muros vermelhos e altos. Não dá entrevistas, não faz aparições públicas e, anunciou o irmão mais novo, não voltará a escrever. Tem 86 anos e um diagnóstico de demência que lhe secou as palavras. «Pois Gabo, que nunca foi religioso, nesse voo para Portugal encomendou duas ou três vezes a alma à Virgem de Guadalupe. Ele costumava dizer que o único medo que um latino confessa é o de viajar de avião. E é verdade.»
Ao lado de Gabriel García Márquez viajava Alfonso Fuenmayor, um jornalista de Barranquilla, de quem se tornara amigo, duas décadas antes, na redação do El Heraldo. Nesse tempo, Gabo era vice-presidente do Tribunal Russell, o tribunal internacional de crimes de guerra. Com a chegada de Pinochet ao poder no Chile e a ditadura militar brasileira numa das fases mais ferozes, havia a hipótese de abrir uma secção para a América Latina em Lisboa. Alfonso, que andava em viagem pela Europa, veio para dar uma ajuda na avaliação. Mas com o Verão Quente em pleno, a instabilidade política no país encarregar-se-ia de anular o projeto.
Ficaram instalados no Ritz e, escreveu García Márquez no seu artigo, durante uma boa parte da estada só havia dois hóspedes no hotel - eles. «Lisboa é uma das mais belas cidades do mundo e, até há um ano, era também uma das mais tristes, por obra de uma rara ditadura medieval que durou quase meio século e cuja força se fundava numa polícia política inclemente. É um país de pobres que enfrenta obstáculos terríveis e uma pressão tremenda. Por causa da sua posição geográfica, está obrigado a sentar-se de sapatos rotos e casaco remendado na mesa dos mais ricos e sofisticados do mundo.» Gabo considerava que a sociedade portuguesa era mais próxima da sul-americana, mas que o país tinha uma espada sobre a cabeça para se tornar europeu. «Nos restaurantes caros, os mariscos exibem-se como joias nas vitrinas, mas são intocáveis, um luxo burguês. Nos restaurantes populares, onde se come um delicioso arroz com sangue de galinha, os empregados debatem-se com uma dúvida: no regime atual, é justo que recebam gorjeta?»
Um dia depois da sua chegada a Lisboa, os primeiros deputados eleitos em liberdade tomavam posse no Parlamento. Gabo decidiu fazer a cobertura da sessão solene de abertura da Assembleia Constituinte e, aí, cruzou-se com alguns dos mais emblemáticos nomes das letras portuguesas. Juntou-se um grupo que acabaria por ir jantar nessa noite à Varanda do Chanceler, um restaurante de Alfama (o mesmo onde Natália Correia haveria de apresentar Francisco Sá Carneiro a Snu Abecassis). No repasto estavam José Cardoso Pires, Fernando Namora e Luís de Sttau Monteiro. Também estava presente o poeta José Gomes Ferreira, na altura presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores.
Esse encontro com García Márquez causou forte impressão em Gomes Ferreira. O poeta português - cujo poema Acordai, musicado por Lopes-Graça, tem servido de hino a vários protestos recentes - escreveria até algumas notas, após uma conversa com o escritor colombiano. Estes escritos nunca foram publicados, são inéditos e íntimos, papéis em bruto. Foram cedidos pelo seu filho, o arquiteto Raul Hestnes Ferreira. «García Márquez, à despedida, disse-me: "Buena sorte!" Tremi. O García Márquez: "Os portugueses são muito parecidos com os latino-americanos. Os espanhóis são mais severos, mais hirtos. Mais senhores solenes. Anos de tempestades".» Em 3 de junho, nova entrada no diário, um quase-poema: «Quando o García Márquez se despediu, desejando-me buena sorte, lembrou-se do Chile. Felizmente é a própria morte que me defende da morte. Que me importa viver mais um dia ou menos um dia? Sim, importa - diz-me a boca de uma nuvem que me acompanha noite e dia.»
O que vai dar cabo da revolução é a conta da luz
A partir daquele jantar na Varanda do Chanceler, Gabo não voltou a estar sozinho em Lisboa. «Entre entrevistas com Vasco Gonçalves, Melo Antunes e Saramago, que nessa altura estava no Diário de Notícias[era director adjunto]», lembra Ernesto Santos Calderón, um dos mais importantes jornalistas da Colômbia, um dos melhores amigos de García Márquez e um dos fundadores da Alternativa, «também fez muitos amigos e divertiu-se bastante em Lisboa».
José Carlos Vasconcelos, diretor do Jornal de Letras, lembra-se de ver o escritor colombiano na festa de aniversário de José Gomes Ferreira, na noite de 9 para 10 de junho, e novamente na Varanda do Chanceler. «Brincávamos todos juntos a dizer que o Gomes Ferreira tinha a mania das grandezas, queria nascer no dia de Camões.» Maria Velho da Costa conheceu García Márquez em casa de Sttau Monteiro. «Aquilo era para ser uma festa, mas estava a tornar-se numa tertúlia, era uma chatice tremenda. Às tantas Gabo perguntou-me se queria fugir dali.» Despediram-se rapidamente, saíram, apanharam um táxi para o Bairro Alto. «A minha memória funciona por imagens fotográficas», diz a escritora. «Lembro-me de descermos a rua em conversa animada. Lembro-me de que ele usava um fato de ganga, calças e casaco. E lembro-me de ficarmos umas boas horas num bar, a conversar e a beber whisky.» Às tantas, o colombiano disse que à revolução portuguesa não faltava heroísmo, faltava prudência e imaginação. «Então estamos bem tramados», respondeu Maria Velho da Costa. «Porque o povo português é como o diabo, sabe mais por velho do que por ser povo.» Essa sentença, descobriu a escritora portuguesa há uns dias, foi a frase com que García Márquez rematou a sua última reportagem em Portugal.
A amizade mais estreita de Gabo em Lisboa era, no entanto, com o autor de Balada da Praia dos Cães. Tinham-se conhecido anos antes em Londres, quando ambos trabalhavam para o serviço internacional da BBC. Edite Cardoso Pires recorda-se dos encontros no terraço do Hotel Mundial, com vista para o Martim Moniz, epicentro da multiculturalidade da cidade. «A influência negra é notável em Portugal, manifesta-se mesmo no caráter dos portugueses», escreveu García Márquez. «E todo o país está saturado pela música quente de Cabo Verde e Angola, que parece a música do nosso trópico.» Era 1975, ano de independência das colónias. Gabo apanhou em cheio a chegada de refugiados, portugueses e africanos, e o regresso de soldados do ultramar. Em 1976, haveria de viajar várias vezes para Angola e escrever um artigo para aAlternativa sobre os novos ares de liberdade e as pressões que vinham de fora, fossem elas de Cuba ou da África do Sul.
A teoria que Gabo expressou nos seus textos não era apenas a de um país cercado, era também o de um país dividido. «Desde a praça do Rossio até ao canto mais remoto e esquecido da província, não há um centímetro de parede, nem um sinal de trânsito, nem o pedestal de uma estátua que não tenha sido pintado com uma mensagem política. Os comunistas pedem unidade sindical. Os socialistas dizem que socialismo sim, mas com liberdades. A extrema-esquerda protesta contra o imperialismo capitalista, os liberais dizem que o voto é a arma do povo e os anarquistas contestam,que a arma é que é o voto do povo. À noite, a reação lança granadas contra as lojas, envenenando o mundo inteiro com o rumor infame que o Portugal formoso e tranquilo das canções morreu.»
Ao mesmo tempo, o povo parecia querer ignorar as rivalidades, entregando-se à embriaguez feliz de Abril: «O erotismo invadiu os cinemas e os quiosques de jornais, fazendo que milhares de espanhóis atravessem ao fim de semana a fronteira para poderem ver o filme mais proibido em Madrid, O Último Tango em Paris.Lisboa tornou-se uma cidade movimentada, com acidentes de viação espetaculares, não só porque os portugueses conduzem de uma maneira intrépida, mas também porque estão genuinamente contentes - e por isso deixaram de respeitar os semáforos.»
Há uma prudência enorme nos textos de Gabo sobre Lisboa, o escritor quase anuncia que a Revolução tem os dias contados, que a Europa, os Estados Unidos e as divisões internas arrastarão inevitavelmente o país para longe da sua essência. García Márquez teme o rumo que as elites estão a tomar, mas encontra nobreza no povo. «Toda a gente fala e ninguém dorme, às quatro da manhã de uma quinta-feira qualquer não havia um único táxi desocupado. A maioria das pessoas trabalha sem horários e sem pausas, apesar de os portugueses terem os salários mais baixos da Europa. Marcam-se reuniões para altas horas da noite, os escritórios ficam de luzes acesas até de madrugada. Se alguma coisa vai dar cabo desta revolução é a conta da luz.»

(Ricardo J. Rodrigues, no Diário de Notícias, 2009) 


Tuesday, April 15, 2014

Paris, homenagem a Fernando Echevarría



NÃO É PARIS QUE ESTÁ LÁ FORA. É ESTARMOS
a ver coincidir o que de dentro
vem, devagar, encontrá-lo
naquela espécie de desfasamento
que deslumbra. Aparece rodeado
de uma ilimitação feliz de objecto.
Ou, diga-se antes, institui-se um halo.
E o halo afaz-se. Interior e externo,
vai recolhendo o estatuto grato
de novidade a expandir o inédito
país intelectual. Aí, de facto,
a novidade eleva-se a compêndio
de iniciação a esse grande fausto
que recrudesce no conhecimento.
Paris é isto. Lavoura de trabalho
que do pouco de si vai renascendo.

(Fernando Echevarría, Categorias e outras paisagens, Afrontamento, 2013, p.359)

Monday, April 14, 2014



Um poema que me traz lágrimas aos olhos (e que não vem nesta antologia):

Devonshire Street W.1 by John Betjeman
The heavy mahogany door with its wrought-iron screen
Shuts. And the sound is rich, sympathetic, discreet.
The sun still shines on this eighteenth-century scene
With Edwardian faience adornment -- Devonshire Street.

No hope. And the X-ray photographs under his arm
Confirm the message. His wife stands timidly by.
The opposite brick-built house looks lofty and calm
Its chimneys steady against the mackerel sky.

No hope. And the iron knob of this palisade
So cold to the touch, is luckier now than he
"Oh merciless, hurrying Londoners! Why was I made
For the long and painful deathbed coming to me?"

She puts her fingers in his, as, loving and silly
At long-past Kensington dances she used to do
"It's cheaper to take the tube to Piccadilly
And then we can catch a nineteen or twenty-two".

Saturday, April 12, 2014

Adormecendo Kappus

Um pouco de gentileza, Senhor Kappus,
não lhe fará mal neste ofício de poeta que consiste
no amor extremo do mundo e na repulsa das suas imagens
e das suas palavras, a destruir até à medula.
Quanto mais irrisório lhe parecer o esplendor das coisas
mais perto estará da epifania e do reencontro
com tudo o que tem que perder.
Ah, por certo é um ofício amargo,
como naquela noite de núpcias da Rainha em que ninguém
estava lá para se divertir. Mas o pior, Senhor Kappus,
é que até irá divertir-se
e comprazer-se na tagarelice, nas pequenas misérias, no ridículo das situações -
- e isso está certo, porque nisso tudo vem embrulhado o seu ofício,
como um gaz asfixiante a espalhar-se no metro da cidade da Poesia
e a contaminar sem cura os seus habitantes.
Mas por muito que papagueie que o belo é só o começo do terrível,
irá, creia-me, divertir-se muito com a irrisão de que tudo é feito
e que vai contribuir também para acrescentar. E este conhecimento é duro e penoso,
sobretudo porque nunca se chega a atingir

Hoje calei-o, Senhor Kappus. Tem sono?

Thursday, April 10, 2014

A vida militar do Senhor Kappus

A minha vida militar não contém matéria poética, acredite:
 já ninguém no mundo quer verdadeiramente invadir a Crimeia,
ocupada pelos Citas.
 Ficou assim visto que nós militares para nada servimos,
a não ser para esta espera junto ao Deserto dos Tártaros.
Os diplomatas querem sossego, para isso servem,
os mercados já não suportam perder os títulos russos,
como aconteceu em 1917, e os políticos, esses,
são pagos para fazer barulho 
e entreter a galeria.  Pudesse eu
desembainhar  a espada num gesto viril
e gritar para os cossacos qualquer coisa, qualquer coisa.
Mas a servidão e a grandeza militares
não serão nunca mais o ofício da poesia!

Qualquer profissão, Senhor Kappus, vale o mesmo
em face da Poesia. Eu sou empregado de escritório,
traduzo cartas para inglês
e encontro na mediocridade da minha vida funcionária
maior servidão e grandeza do que no seu uniforme poído
pelas ocasiões falhadas e pelos massacres que nunca puderam ser.
Esconda esse seu sonho torto de vestir os uniformes oitocentistas
da Guerra da Crimeia!
Todos os ofícios se equivalem
no esplendor de um mesmo vazio
e este nosso ofício da poesia, quando deixamos de acreditar
que somos bruxos, profetas, magos
ou glamourous lyric stars,
vemo-lo reduzir-se à grandeza do seu próprio jogo
e à dignidade da sua íntima derrota.
Arrume a farda, Senhor Kappus,
e volte a encontrar-se comigo
à civil. Por favor.








  

Tuesday, April 8, 2014

De Senectude

Why should not old men be mad?
Some have known a likely lad
That had a sound fly-fisher's wrist
Turn to a drunken journalist;
A girl that knew all Dante once
Live to bear children to a dunce;
A Helen of social welfare dream,
Climb on a wagonette to scream.
Some think it a matter of course that chance
Should starve good men and bad advance,
That if their neighbours figured plain,
As though upon a lighted screen,
No single story would they find
Of an unbroken happy mind,
A finish worthy of the start.
Young men know nothing of this sort,
Observant old men know it well;
And when they know what old books tell
And that no better can be had,
Know why an old man should be mad.


WILLIAM BUTLER YEATS

Monday, April 7, 2014

O Senhor Poeta e o Senhor Kappus

É quando pesam demais as palavras,
quando se rompe a ordem natural que as suporta,
é nesse momento
que as palavras caem, como frutos maduros, na poesia.
Eu escrevi isso, Senhor Kappus, e agora digo-lhe que o poema
não é uma epifania nem uma consagração:
são as palavras que caem, abatidas pela vida,
e esperam por nós para se erguerem,
como se a música assim pudesse permanecer.

Porque sabemos que temos de continuar,
não porque não pudéssemos viver sem a poesia.
mas porque não sabemos mais fazer outra coisa,
o universo das nossas possibilidades, o infinito das nossas determinações
reduz-se à palavra que cai nas suas mãos, Senhor Poeta,
nas suas mãos que não sabem fazer música.






Boris Pasternak (1890 - 1960)

Hamlet

The murmurs ebb; onto the stage I enter.
I am trying, standing in the door,
To discover in the distant echoes
What the coming years may hold in store.

The nocturnal darkness with a thousand
Binoculars is focused onto me.
Take away this cup, O Abba Father,
Everything is possible to Thee.

I am fond of this Thy stubborn project,
And to play my part I am content.
But another drama is in progress,
And, this once, O let me be exempt.

But the plan of action is determined,
And the end irrevocably sealed.
I am alone; all round me drowns in falsehood:
Life is not a walk across a field. 

Sunday, April 6, 2014

Encontro em Paris com o Senhor Kappus

Não espere pela posteridade, Senhor Kappus.
Ela arranjará sempre desculpas para não vir ao seu encontro:
retida num engarrafamento ou teve de ir buscar as crianças
à escola, qualquer pretexto lhe servirá
para adiar a coroa de louros
que certamente o senhor irá um dia julgar que merece.
Habitue-se, Senhor Kappus, como nós nos habituamos
ao modo oblíquo que as mulheres usam para nos dizer que não.

Paris

Desconfio sempre de ti, Paris.
A beleza que imprimes nas coisas não é leve, é sinuosa,
tão dura e sinuosa como a vida.
Cidade impiedosa, ensina-me a resistir
à usura das coisas imperfeitas.
Ensina-me a mentir à vida
com o mesmo descaramento que a vida tem
para nos mentir a nós.
Cidade que me desdenhas e me dás a medida certa do meu ser,
como o metro-padrão que guardas num museu,
aliás já ultrapassado pela ciência!
É em ti que afinal me meço e reconheço
e nunca poderei dizer-te "à nous deux Paris!",
porque tu és afinal tão insuperavelmente bela
e sem ilusões
como a vida que nos foi dada.


Wednesday, April 2, 2014

Ainda Holderlin


"Wo aber Gefahr ist, wächst das Rettende auch" (Mas onde está o perigo, cresce também o que salva). 
(Holderlin)