Saturday, April 26, 2014

O Senhor Kappus e o 25 de abril

Face às grandes emoções colectivas, Senhor Kappus,
verá que jamais se conseguirá libertar dessa distância
que o comércio com as palavras levantou entre si
e a retórica das proclamações.
Não é um mal nem um bem, repare:
tal não o inibirá de desfilar com os outros,
de cantar a plenos pulmões cantigas como armas
e de continuar a conspirar em sótãos
através das idades. Não.
Apenas uma surda e irónica distância
entre si e as palavras
o fará suspender por vezes a sua convicção
e vaguear os seus olhos por todas as coisas da terra.
Por uma vez sem exemplo, Senhor Kappus,
deixo-o hoje com a citação
de um poema inteiro:

Com fúria e raiva acuso o demagogo 
E o seu capitalismo das palavras 

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada 
Que de longe muito longe um povo a trouxe 
E nela pôs sua alma confiada 

De longe muito longe desde o início 
O homem soube de si pela palavra 
E nomeou a pedra a flor a água 
E tudo emergiu porque ele disse 

Com fúria e raiva acuso o demagogo 
Que se promove à sombra da palavra 
E da palavra faz poder e jogo 
E transforma as palavras em moeda 
Como se fez com o trigo e com a terra 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"

2 comments:

  1. ou sobre o mau uso da palavra e kappus leu e pensou e onde está um poema de natercia freire que invoca as palavras, não encontro, outros poetas se ocupam da palavra etc

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  2. Os poetas só se ocupam mesmo das palavras, Patrício Branco.

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