Tuesday, April 28, 2015

A VÉNUS AO ESPELHO, Vasco Graça Moura, "Laocoonte", 2005


Velásquez, Vénus ao espelho , National Gallery, Londres

se a vénus ao espelho fosse
uma oliveira a arder por dentro
com sua chama de óleo doce
e tudo em brasa desde o centro,

se o seu espelho acaso fosse
embaciado pelo alento
que algum cupido em voo trouxe
entre desejo e atrevimento,

se o ar no quarto depois fosse
feito luz táctil do aposento
e se entranhasse a tomar posse
da nudez rósea no cinzento,

e se velázquez então fosse
pintar-lhe o ensimesmamento
eu te diria: misturou-se
ao próprio instinto o pensamento.

Vasco Graça Moura, em Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, 2005


Monday, April 27, 2015

ESPLENDOR NA RELVA, Ruy Belo, em "Homem de Palavra(s)", 1970



Natalie Wood, em "Splendor in the Grass" de Elia Kazan, 1961

ESPLENDOR NA RELVA

Eu sei que deanie loomis não existe
mas entre as mais essa mulher caminha
e a sua evolução segue uma linha
que à imaginação pura resiste

A vida passa e em passar consiste
e embora eu não tenha a que tinha
ao começar há pouco esta minha
evocação de deanie quem desiste

na flor que dentro em breve há-de murchar?
(e aquela que no auge a não olhar
que saiba que passou e que jamais

lhe será dado ver o que ela era)
Mas em deanie prossegue a primavera
e vejo que caminha entre as mais

(Ruy Belo, "Homem de Palavra(s), 1970) 

Sunday, April 26, 2015

DESCRIÇÃO DA GUERRA EM GUERNICA, Carlos de Oliveira, "Entre duas memórias", 1971



Guernica, Pablo Picasso, 1937, Museu do Prado, Madrid

I

Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.


II

As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada; bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do tecto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio; e assim,
por toda parte,
a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.


III

Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros; sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele; inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.


IV

Em baixo, contra o chão
de tijolo queimado,
os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,
barro, sestas pobres? quem
tentou salvar o dia,
o seu resíduo
de gente e poucos bens? opor
à química da guerra,
aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,
este gládio,
esta palavra arcaica?


V

Mesa, madeira posta
próximo dos homens: pelo corte
da plaina,
a lixa ríspida,
a cera sobre o betume, os nós;
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amor
do carpinteiro ao objecto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,
uma criança da família.


VI

O pássaro; a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa,
que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,
sem o ferir;
modelo doutros voos: nuvens;
e vento leve, folhas;
agora, atônito, abra as asas
no deserto da mesa;
tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.


VII

Cavalo; reprodutor
de luz nos prados; quando
respira, os brônquios;
dois frêmitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano, ao furor.


VIII

Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar; e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.


IX

Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.


X

O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa.

SANTA SALOMÉ poema de Nuno Júdice, "O fruto da gramática", 2014



As razões pelas quais dom joão quinto mandou construir
a capela de são joão baptista, na igreja de são roque, têm sido
atribuídas ao desejo de exibir a ostentação da sua corte,
o poder do dinheiro, a vontade de ficar na História por esse
acto magnânimo para com o santo protector da peste. Os
próprios artesãos do ouro e do mármore, os pintores, os
joalheiros, entregaram-se ao cego cumprimento dessa ordem
de não poupar para que o resultado brilhasse, atraindo
os olhares dos crentes que, desse modo, se desviariam
do que os padres diziam no púlpito de onde pregavam,
após o que publicavam os sermões dedicados ao rei. No
entanto uma única razão levou o rei a escolher são joão
baptista: a celebração de salomé; e o que ele pretendeu
foi pôr no prato a cabeça do santo para que ela saísse
dos ouros e das tapeçarias e repetisse, à sua frente,
a dança que se para sempre a condenou. Seria, então,
um altar em honra de uma salomé que o papa deveria
elevar ao estatuto de santa não por ter dançado quase nua
sob os véus transparentes em frente de herodes mas
por ter conseguido que a cabeça de são joão baptista,
no prato de porcelana em que os pintores a colocam,
tivesse feito dele o primeiro de todos os santos. E
em vez de admirarmos a arte da capela de são joão
baptista na igreja de são roque, o que deveríamos fazer
era rezar a salomé, que dom joão quinto santificou,
por ter pedido a cabeça de são joão baptista, para que
nunca deixe de dançar, sob os véus transparentes
da sua nudez, pelos séculos dos séculos.

Poema Santa Salomé de Nuno Júdice, in O fruto da gramática, 2014

Capela de São João Baptista, Igreja de São Roque, Lisboa

Saturday, April 25, 2015

Pranto pelo Nepal



Hergé, Tintin au Tibet

25 de Abril


Maria Helena Vieira da Silva

Sunday, April 19, 2015

RETRATO DE UM DESCONHECIDO, Jorge de Sena, "Metamorfoses", 1963

Fita-nos, como o pintor pensou,
não como jamais fitou alguém.
Ele próprio se não conheceu nunca
nesse retrato que a família, que os amigos,
sempre acharam todos parecido.
O Mestre, anos depois, que por acaso
viu, sem voltar a ver já o modelo,
o quadro esplêndido, achou pintura má
no que fizera; e não reconheceu
aquele olhar tão variamente fundo,
diverso do que, em tintas, punha sobre o mundo.

Mas tudo conjectura, apenas.

Quem era? Qual o nome? Não sabemos
nada, inteiramente nada. A fronte límpida,
a boca que se fecha num desdém tão vago,
os olhos falsamente juvenis, irónicos,
o róseo, o negro, a terra, a leve pincelada
parecem falar. Apenas o parecem. E,
dele, como do Mestre, não sabemos nada.
E quanto à data... a data é muito incerta.

Magnífica pintura.  Oh!  Sem dúvida,
de uma importante personagem. Inda
dependeremos desse jovem? Mas quem era?
Será que ele o sabia? Ou que o pintor o soube
naquel' momento de olhos em que o mundo coube?

Retrato de Jovem Cavaleiro, Escola Portuguesa do século XVI, Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa

Do livro Metamorfoses, 1963

Saturday, April 18, 2015

ILHA DE CAPRI, poema de João Miguel Fernandes Jorge, em "Mirleos", 2015

O odor o mar os figos
o sal cortava as ruelas
o vento sobre os terraços
entre os ramos dos limoeiros
na agrura do fruto da piteira
no cipreste no muito alto do céu. Répteis
senhores do muro de pedra
guardiães de vinhedos
cepas arrancadas ao chão do Vesúvio. A
rapariga certeza lembrada de cristal
sabor de pão recém-saído do forno
pisou a tela do moço Henrique
ficou prisioneira na paisagem no colorido
no meio do ar
o rosto límpida figura de faiança antiga
tão perto dos séculos

depois
e bem antes do sentimento
à luz da água marinha
soltou os cabelos do lenço vermelho
p'la extrema do horizonte

Ilha de Capri, óleo sobre madeira, Henrique Pousão, 1883, Museu Machado de Castro, Coimbra

Zé Mariano


Vão-se embora assim, sem avisar.
Tudo nos diz, é verdade, que o nosso tempo passou
e que agora destroem tudo o que fizemos com tenaz paciência
e álacre vontade.
É certo.
Mas podiam ao menos deixar-nos ficar a um canto
a rememorar ladainhas, a entoar antigos motes,
a viver, em suma.
Mas tu não querias isso. Tu ficaste até ao fim
e sorrias e respondias à vida com o teu trabalho constante,
como outros respondem com poemas vagos
e vidas vãs.
Adeus, Zé Mariano, aos dezassete anos falávamos de Cesariny
em casa do Jorge Silva Melo
e há três anos a nossa última conversa
foi para preparar com todo o rigor a visita à UNESCO
do teu sucessor no Ministério.
Ali em Paris, onde nos corredores do horrendo edifício da Fontenoy,
lembrávamos juntos o Cesariny e o "coitado do Jorge".  Adeus, Zé Mariano.