Monday, January 27, 2014

José Emilio Pacheco (1939 ~2014)


La falsa vida
Alguien te sigue a veces en silencio.
Las cosas nunca dichas
Se transforman en actos.
Atraviesas la noche en las manos del sueño, Pero el otro, implacable,

No te abandona: lucha
Contra la irrealidad, la falsa vida Donde todo es ocaso.

Frágil perseguidor que eres tú mismo,
Lo has obligado a ser, en guardia siempre, El minucioso espejo que no olvida.
© José Emilio Pacheco 

O futuro é radioso como uma sarça ardente

Tu não sabes o que vai acontecer:
sabes que tens de pagar pelos outros
e nao podes queixar-te, nem vir com histórias batidas,
de amanhãs que cantam, de ricos que nao passam pelo fundo de uma agulha, tudo
contos da carochinha, frases longas demais
que nem sequer se podem traduzir convenientemente para inglês,
porque mesmo quando foram escritas em alemão,
foi da economia política inglesa, essa mesma que Marx estudava dia e noite
no British Museum,
que recebemos as Tábuas da Lei.
E a sarça ardente da crise financeira
o que é senão o pisar sobre a terra
do Deus dos exércitos e das rendas,
a pegada divina que incendeia o mundo
e o leva connosco, sem inflexões, ao seu destino?

Friday, January 24, 2014

A um jovem poeta

Nos versos não fica nada
do que pensamos ou sentimos:
não se iluda, senhor Kappus.
Nós só jogamos com as palavras que nos deram,
como jogadores profissionais com cartas marcadas
num filme passado no Mississipi,
dentro de um daqueles barcos de rodas a subir o rio.

Bem me pareceu estranho o seu chapéu
e os seus modos alterados, senhor Poeta.
Está em flagrante delitro, hoje não vale a pena de todo
falar consigo.

Não se zangue, senhor Kappus, ouça-me até ao fim.
Anda aí muita banha de cobra nesse negócio da poesia.
Temos muitas vezes que cantar a canção do infinito dentro de uma capoeira
e arrancar a máscara que se agarrou à outra máscara por cima da máscara
que nós próprios somos. Pense bem
se podia algum dia viver sem escrever poesia.
Pense muito na sua infância, diga baixo o Nininho quer jinhos,
e veja se é capaz de não ter a menor vergonha
de escrever sem ter nada para dizer.
Por hoje é tudo. Amanhã encontramo-nos à mesma hora,
neste mesmo café.


(Franz Xaver Kappus foi o destinatário das "Cartas a um Jovem Poeta" de Rainer Maria Rilke; o personagem "em flagrante delitro" que "canta a canção do infinito dentro de uma capoeira" e diz que "o Nininho quer jinhos" é reconhecível por detrás de todas as suas máscaras)






Análise política da situação em França

Thursday, January 23, 2014

Poema em forma de diálogo



Foi que tudo anoiteceu. Não sabias
limpar as armas, usar as máquinas,
nada sabias.
Ali onde anoitecia o terror era outra palavra para a beleza,
mas tu, tu, de nada sabias.

Como poderia eu aperceber-me
da ausência que deambulava na cidade,
dos rostos fechados, das máscaras da noite?
Nunca houve piedade para os que usaram de piedade,
assim diziam os livros.

O anoitecer da beleza é o avesso da morte
e por isso tens que estar desperto, lutar contra o frio
que nos atravessa o sono e as palavras,
todas as palavras que deixámos perdidas pelos lugares,
fotografias enganosas do que pudémos ser.

Seria assim uma atenção levada ao inverso,
uma conversa banal à beira da água,
um esplendor contido no seu próprio escurecer?

É só porque tu não sabias...

Monday, January 20, 2014

Um poeta: A.M. Pires Cabral

HORA DO POENTE

Na hora do poente
há mais melancolia e mais sigilo
no quase nocturno voo das aves.

Como se a penumbra
lhes censurasse as asas.

Como se a grande apoteose do ocaso
fosse um presságio do fim
de todas as coisas.

Como se a noite fosse ainda mais escura
do que a escuridão em que se enrola.

Como se o dia desembocasse
na morte directamente,
sem passar primeiro pelos portais da noite.

(A.M. Pires Cabral, Gaveta do fundo, Tinta da China, Lisboa, 2013) 

Sunday, January 19, 2014

Literatura e diplomacia: Giorgos Seferis (1900 - 1971), Prémio Nobel em 1963

Giorgos Seferis - Biographical

Giorgos Seferis was born in Smyrna, Asia Minor, in 1900. He attended school in Smyrna and finished his studies at the Gymnasium in Athens. When his family moved to Paris in 1918, Seferis studied law at the University of Paris and became interested in literature. He returned to Athens in 1925 and was admitted to the Royal Greek Ministry of Foreign Affairs in the following year. This was the beginning of a long and successful diplomatic career, during which he held posts in England (1931-1934) and Albania (1936-1938 ). During the Second World War, Seferis accompanied the Free Greek Government in exile to Crete, Egypt, South Africa, and Italy, and returned to liberated Athens in 1944. He continued to serve in the Ministry of Foreign Affairs and held diplomatic posts in Ankara (1948-1950) and London (1951-1953). He was appointed minister to Lebanon, Syria, Jordan, and Iraq (1953-1956), and was Royal Greek Ambassador to the United Kingdom from 1957 to 1961, the last post before his retirement in Athens. Seferis received many honours and prizes, among them honorary doctoral degrees from the universities of Cambridge (1960), Oxford (1964), Salonika (1964), and Princeton (1965).

George Seferis – Poems

poems by George Seferis
translated by Manolis

prologue

From Seferis' speech at the Swedish Academy:
I belong to a small country. A rocky promontory in the Mediterranean, it has nothing to distinguish it but the efforts of its people, the sea, and the light of the sun. It is a small country, but its tradition is immense and has been handed down through the centuries without interruption. The Greek language has never ceased to be spoken. It has undergone the changes that all living things experience, but there has never been a gap. This tradition is characterized by love of the human; justice is its norm. In the tightly organized classical tragedies the man who exceeds his measure is punished by the Erinyes. And this norm of justice holds even in the realm of nature.
"Helios will not overstep his measure" says Heraclitus, "otherwise the Erinyes, the ministers of Justice, will find him out". A modern scientist might profit by pondering this aphorism of the Ionian philosopher...
In our gradually shrinking world, everyone is in need of all the others. We must look for man wherever we can find him. When on his way to Thebes Oedipus encountered the Sphinx, his answer to its riddle was: "Man". That simple word destroyed the monster. We have many monsters to destroy. Let us think of the answer of Oedipus.

excerpt

Strophe
Moment sent by a hand
that I had so much loved
you reached me almost at dusk
like a black dove

The road shone before me
soft breath of sleep
at the end of a secret feast...
Moment grain of sand

that you alone kept
the tragic clepsydra whole
silent as though it had seen Hydra
in the heavenly orchard
Denial
On the secluded seashore
white like a dove
we thirsted at noon
but the water brackish

On the golden sand
we wrote her name
when the sea breeze blew
the writing vanished

With what heart with what spirit
what desire and what passion
we led our life what a mistake

Os jotas (parafraseando "Os Putos" de Ary dos Santos, cantado por Carlos do Carmo)


Parecem bandos de pardais à solta
Os jotas, os jotas
São como índios, capitães da malta
Os jotas, os jotas
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do chefe
É a ternura que volta!
E ouvem-no a falar do homem novo
São os jotas deste povo
A aprender o mundo todo!
Os votos brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um jota que diz que não,
Se a moção vier, não deixo
Um voto abafado na proa
Uma moção na algibeira sem cor
Um jota que pede e amola
Porque a ambição lhe cala a dor.
Parecem bandos de pardais à solta
Os jotas, os jotas
São como índios, capitães da malta
Os jotas, os jotas
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do líder
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os jotas deste povo
A aprenderem a ser homens!

Friday, January 17, 2014

José Terra (1928 - 2014)



Para O Poema da Criação

Porque tu percorres o meu sangue 
e paras de repente no meu cérebro. 
Teus olhos procuram a flor da pele 
buscando a existência fugidia 
das árvores, dos rios, da paisagem. 
E se te reconheço é porque apenas 
és um sinal qualquer de outro país 
donde fui expulso para sempre. 
E se te reconheço é porque foges 
pelas longas margens longamente 
e teu sorriso concreto só existe 
para a boca oleosa do veneno. 
E se te reconheço é porque quero 
entre meus dedos destruir teus olhos. 
Para que tu existas e eu exista 
nenhum sinal de nós deve existir. 

Thursday, January 16, 2014

Sai no próximo dia 22 de fevereiro


Tim Tim em Portugal

O sacerdote português que conhecia Hergé e se correspondia com ele convenceu os responsáveis da revista juvenil “O Papagaio” a publicar as histórias, tornando-se Portugal, no ano de 1936, o primeiro país não francófono a reproduzir as aventuras de Tintin.
*
O padre Varzim tinha estudado na Universidade de Lovaina, na Bélgica, e feito amizade com o padre Norbert Walez, diretor do diário católico “Le Vingtième Siècle”, em cujo suplemento juvenil, “Le Petit Vingtième”, foram publicadas as primeiras aventuras de Tintin.
“O Papagaio” era dirigido por Adolfo Simões Müller, grande admirador de Hergé, que decidiu colorir as aventuras de Tintin sem pedir permissão ao autor, fazendo assim uma estreia mundial. Hergé não protestou e até gostou de ver os seus desenhos coloridos, criticando apenas a paginação, que tinha sido remontada.

ImagemPrimeira aventura de Tintin publicada em Portugal
*

Wednesday, January 15, 2014

Juan Gelman (1930 - 2014)

JUAN  GELMAN

Um grande senhor não implora à Poesia que o assista,
mas um poeta sério não se esconde da poesia!

Juan Gelman não precisa de limpar de aura a poesia:
ele esteve demasiado perto do horror para jogar jogos

que não sejam o deambular de uma criança
pela praia do terror e do olvido!


(Lendas da Índia, Dom Quixote, 2011, p.24)


Friday, January 10, 2014

Literatura e diplomacia: historiadores


Embora o objecto destas notas seja a relação entre a diplomacia e a escrita propriamente literária, faço hoje referência a um excelente livro de um diplomata historiador. 

Um poeta muito interessante


 A poesia é uma forma de nos estamparmos de moto na segurança do lar.  (Daniel Jonas, em entrevista ao Público hoje)


O meu poema teve um esgotamento nervoso. 
Já não suporta mais as palavras. 
Diz às palavras: palavras 
ide embora, 
ide procurar outro poema 
onde habitar. 

O meu poema tem destas coisas 
de vez em quando. 
Posso vê-lo: ali distendido 
em cama de linho muito branco 
sem perspectivas ou desejo 

quedando-se num silêncio 
pálido 
como um poema clorótico. 

Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti? 
mas apenas me fixa o olhar; 
fica ali a fitar-me de olhos vazios 
e boca seca.

Daniel Jonas

Thursday, January 9, 2014

Literatura e diplomacia: Dominique de Villepin em Nova Iorque (2003)

(…)  Bien des années plus tard, dans la ville écorchée (Nova Iorque, 2003), face aux vents déchaînés, j'en appelais aux mots de Rimbaud, d'Artaud ou de Duprey. À une heure si grave, comment ne pas penser à ces voleurs de feu qui allumèrent, des siècles durant, les brasiers du coeur et de l'imagination, de soif et d'insomnie, pour ne bâtir d'autre empire qu'à l'intérieur de soi. Pour faire taire au coeur de l'homme la guerre vaine et, par la magie des mots, exorciser les démons. Comme dans le combat de Jacob avec l'Ange, dans le ravin d'Yabboq, celui qui supplanta par le mensonge et la ruse devient enfin un autre, tous les autres, pour avoir affronté en lui la face de Dieu. Oui, contre les forces aveugles, toutes les puissances stériles, choisissons le combat qui grandit. Alors cet ouvrage, pour refuser la fatalité et le vertige, pour chasser la peur qui crie au fond de nous. (…)

Dominique de Villepin, Éloge des Voleurs de Feu, Gallimard, 2003

nota em 2014: George W. Bush não apanhou a tradução...  

Literatura e diplomacia: António Feijó (1859 - 1917)

Salgueiro
Adoro esta mulher moça e formosa,
Que à janela, a sonhar, vejo esquecida,
Não por ter uma casa sumptuosa
Junto ao Rio Amarelo construída…
- Amo-a porque uma folha melindrosa
Deixou cair nas águas distraída.
Tambem adoro a brisa do Levante
Não por trazer a essência virginal
Do pessegueiro que floriu distante,
No pendor da Montanha Oriental…
- Amo-a porque impeliu a folha errante
Ao meu batel no lago de cristal.
E adoro a folha, não por ter lembrado
A nova primavera que rompeu,
Mas por causa de um nome idolatrado
Que essa jovem mulher n’ela escreveu
Com a doirada agulha do bordado…
E esse nome… era o meu.

BiografiaFez os estudos liceais em Braga e estudou Direito na Universidade de Coimbra, concluindo o curso em 1883.

Em 1886 ingressou na carreira diplomática.
Exerceu cargos diplomáticos no Brasil (consulados nos estados de Pernambuco e do Rio Grande do Sul) e, a partir de 1895, na Suécia, assim como na Noruega e na Dinamarca.
Desposou em 24 de Setembro de 1900 a sueca Maria Luísa Carmen Mercedes Joana Lewin (nascida em 19 de agosto de 1878), cuja morte prematura, em 21 de setembro de1915, o viria a influenciar numa temática fúnebre, patente na sua obra.
Pálida e Loira
Morreu. Deitada num caixão estreito,
pálida e loira, muito loira e fria,
o seu lábio tristíssimo sorria
como num sonho virginal desfeito.

Lírio que murcha ao despontar do dia,
foi descansar no derradeiro leito,
as mãos de neve erguidas, sobre o peito,
pálida e loira, muito loira e fria.

Tinha a cor da raínha das baladas
e das monjas antigas maceradas
no pequenino esquife em que dormia.

Levou-a a morte em sua garra adunca,
e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca!
pálida e loira, muito loira e fria.

Wednesday, January 8, 2014

Literatura e diplomacia: excerto de "O Fim" de António Patrício

(…)

A AIA

Mas então … o que os jornaes dizem, é verdade? … Leio … e não posso crêr … não quero crêr …

O MINISTRO

Estamos todos assim. Não queremos acreditar, não podemos acreditar (com sarcasmo). Foi o nosso maior vício a esperança. (Sublinhando as palavras, n'uma grande agitação nervosa). Há oito dias já, não existimos …; desde que os representantes dos nossos crédores, reunidos em conferência internacional, o decidiram. Pois bem: o conselho de ministros reuniu hoje… Tratou-se d'ir, o mais polidamente possível, à despedida dos embaixadores, que receberam ordem dos governos p'ra partir …; calculou-se a hora a que chegarão, p'ra tomar posse de nós, as esquadras extrangeiras …; e alguns dos meus collegas, prevendo um protectorado moderno, no espírito da nossa civilisação, dizem constar-lhes:  que além da rigorosa administração da fazenda que foi nossa, nada soffreremos … Vão dar-nos mesmo um parlamento … Só não existimos… De resto, um parlamento posthumo…comícios posthumos… Como até aqui, afinal… como até aqui…

(…)

António Patrício, O Fim, 1909 

Tuesday, January 7, 2014

Um estranho animal de duas cabeças: artigo publicado na "Colóquio" nº 185

Um estranho animal de duas cabeças: o poeta-diplomata

LUÍS FILIPE CASTRO MENDES

À memória de António Pinto da França, diplomata e escritor, homem de cultura e de fina atenção ao mundo dos outros

É meu objectivo fazer uma digressão sobre a figura do escritor que é diplomata, ou do diplomata que é escritor, com especial ênfase na imagem do poeta-diplomata.
Tomemos como ponto de partida uma frase de um manifesto surrealista de 1925 que, ao atacar um poeta francês, Paul Claudel, ao tempo embaixador no Japão, tecia as seguintes considerações, que me permito traduzir:

Para nós não pode haver equilíbrio nem grande arte. Há muito que a ideia de Beleza está caduca. Só fica de pé uma ideia moral, como por exemplo que não se pode ser ao mesmo tempo embaixador e poeta.

E este manifesto lembra-nos que, apesar de Octavio Paz e de João Cabral de Melo Neto, de Paul Claudel e de Pablo Neruda, a ideia de um poeta a exercer funções de representação do Estado provoca ainda resistências e reacções «dos dois lados da barricada», por assim dizer.
Para uns, a ideia de «poeta» remete para uma conotação estereotipada a um irresponsável que vive no mundo dos sonhos e das ilusões e que não tem capacidade para assumir a defesa rigorosa e pragmática dos interesses políticos, económicos e sociais, que um diplomata tem como obrigação defender.
Para outros, o poeta só pode ser um «maldito». Avesso aos ritos e às normas sociais, proclamando-se orgulhosamente «sem qualidades», ele (ou ela) só pode viver à margem da vida social, junto do excesso, da marginalidade ou da loucura. Que Wallace Stevens tenha sido director de uma companhia de seguros, Fernando Pessoa empregado de comércio, T. S. Eliot funcionário de um banco ou Gottfried Benn médico de um hospital não os interessa nem
145
demove desta ideia, digna de um ultra-romantismo exacerbado, mas que os surrealistas de 1925 (e eram Aragon, Breton, Éluard, Artaud, Bousquet, Desnos, alguns dos maiores poetas franceses do século passado) perfilhavam também, ao ponto de responder o seguinte a Claudel, quando ele, justamente para mostrar que um poeta pode ser um homem prático, gabava os êxitos da sua, como se diria hoje, «diplomacia económica»:

Nós declaramos considerar a traição e tudo o que, de uma forma ou outra, possa atingir a segurança do Estado, bem mais conciliável com a poesia do que a venda de «grandes quantidades de toucinho» por conta de uma nação de porcos e de cães.

E, com efeito, na entrevista a que este manifesto reagia, o poeta-embai- xador Paul Claudel, para 
mostrar bem a sua capacidade e eficiência nesta área económica, que sempre foi importante na vida diplomática (nós não inventámos nada), dizia expressamente:

Durante a guerra, fui à América do Sul [esteve em posto no Rio de Janeiro] para comprar trigo, carne em conserva e toucinho para o nosso Exército e fiz ganhar ao meu país duzentos milhões.

Não é fácil, portanto, ser aceite pelos dois mundos. Para um lado da barri- cada, somos uns «parvos duns poetas ou uns loucos», citando a «Gazetilha» de Pessoa/Campos, que vieram meter-se em assuntos de gente séria. «Este mundo não está para poetas», disse-me uma vez, quando tomei posse de um cargo público, um homem político que eu, aliás, muito respeito. Para o outro lado da barricada, nós, poetas-diplomatas, estamos comprometidos com o poder, corrompidos pelo Estado e pelas suas mordomias e somos exactamente o inverso do que esses poetas pretendem da poesia, somos gente «com qua- lidades» (ou «com atributos», para traduzir mais correctamente a expressão de Musil). Em resumo: como poetas, excelentes diplomatas; como diplomatas, óptimos poetas.
E, no entanto, qual é a questão que se coloca aqui? Como escrevia Maurizio Serra, embaixador e escritor italiano:

A variante do escritor-diplomata faz confusão. Que quer esse estranho animal de duas cabeças? Não lhe bastaria uma, como aos outros mortais? Mas se contamos na literatura universal negociantes de vinhos, inspectores dos monu- mentos históricos, caçadores de baleias, jogadores cobertos de dívidas, empregados de seguros, detectives privados e mesmo grandes criminosos, porque seria negado esse privilégio aos diplomatas?
146

Nem se diga que os diplomatas beneficiaram na sua carreira com o esta- tuto de escritores ou os escritores aumentaram o seu êxito com a qualidade de diplomatas. Começando pela prata da casa, como veremos adiante, Garrett teve uma carreira conturbada pela sua oposição frontal ao Partido Cartista e à rainha D. Maria II, Eça teve uma normal carreira de cônsul, que começou por um dos piores postos (Havana) e terminou no melhor (Paris), António Feijó passou quase toda a sua vida diplomática em Estocolmo e António Patrício teve igualmente uma carreira mediana, entre Cantão e Caracas, passando brevemente por Londres.
Com excepção do Quai d’Orsay no período entre as duas guerras, onde os chamados «Berthelot boys» (Paul Morand, Jean Giraudoux e, sobretudo, Alexis Léger, conhecido enquanto poeta como Saint-John Perse), sob a égide do secretário-geral Philippe Berthelot, constituíram um real grupo de poder e influência dentro do Ministério e deram até origem a uma moda literária que o crítico da época Albert Thibaudet qualificou como littérature à la valise (referindo-se por esta expressão à «mala diplomática» ) e talvez também da América Latina, onde grandes escritores como o já citado Octavio Paz, mas também Rubén Darío, Miguel Ángel Asturias, Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Alejo Carpentier, Jorge Edwards, foram (e Jorge Edwards ainda é) todos embaixadores dos seus países, não vemos por aí além grandes «siner- gias» (para usar uma horrenda expressão dos nossos tempos) entre carreira diplomática e carreira literária. Com uma excepção de peso, que é interessante: justamente Saint-John Perse.
Ao ler a exaustiva biografia que lhe foi dedicada por Renauld Meltz, não ficamos com qualquer dúvida de que o embaixador Alexis Léger e o poeta Saint-John Perse souberam muito bem estender a escada um ao outro, Léger longos anos como secretário-geral do Quai d’Orsay, sucedendo a Berthelot, Saint-John Perse a dever em muito o Prémio Nobel da Literatura às pressões diplomáticas do seu amigo secretário-geral das Nações Unidas, o sueco Dag Hammarskjold.
Ao contrário de outros, como Morand, que escolheram Pétain e a cola- boração, o nosso poeta-diplomata emigrou durante a Segunda Grande Guerra para os Estados Unidos, onde cometeu um erro político fatal para a sua carreira: frontalmente hostil a De Gaulle, veio influenciar Roosevelt na funda antipatia que o presidente americano sempre sentiu pelo líder da Resistência e futuro presidente da França, hostilidade que só a influência de Churchill (que não era um incondicional, longe disso, do general De Gaulle, mas que queria, com realismo e visão, manter a França como potência europeia aliada no pós- -guerra) logrou demover. Naturalmente, após a libertação da França, Léger, embora nunca tenha sido um colaboracionista, afastou-se da diplomacia, por ser radicalmente incompatível com Charles de Gaulle.
147
Compreende-se que poucos anos depois da chegada de De Gaulle ao poder e com o gaullista André Malraux candidato ao mesmo Prémio Nobel, a decisão da Academia Sueca, sempre avessa às influências directas das capitais, não tenha caído bem junto do governo francês. Este poeta-diplomata podia estar em desgraça como diplomata, mas ficou em graça como poeta.
Em geral, a sorte dos escritores-diplomatas tem sido muito variável. Para não citar o caso extremo de Dante, que, após a missão diplomática que fez a Roma, foi condenado pela sua cidade de Florença a ser queimado vivo, sorte a que escapou pelo exílio, encontramos percursos bem diferenciados, desde Chateaubriand, que foi embaixador na Santa Sé e depois ministro dos Negócios Estrangeiros de França, grandezas a que ele não nos poupa nas suas vaidosas, mas geniais, Mémoires d’outre tombe, a Stendhal, que nunca passou de cônsul em Civitavecchia e era azedamente repreendido quando era apanhado, pelo seu ministro em Paris, fora do posto (o que aconteceu muitas vezes).
No Brasil, pode dizer-se que saiu a sorte grande ao Itamaraty: aquele que é, a meu ver (e o falecido Óscar Lopes partilhava esta opinião), o maior prosador da língua portuguesa do século XX, João Guimarães Rosa, era diplomata de carreira, foi cônsul em Hamburgo e depois ocupou altas funções no Ministério. Dois dos maiores poetas de sempre da língua portuguesa, João Cabral de Melo Neto (que foi embaixador em Dakar e cônsul no Porto e me aconselhou a ficar sempre cônsul e nunca querer ser embaixador) e Vinicius de Moraes (capitão do mato, poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil) foram membros da carreira diplomática brasileira. Não é pouca coisa.

Em Portugal, diplomacia e literatura apontam-nos sempre em primeiro lugar para a figura do ilustre membro da carreira consular (na altura separada da carreira diplomática) José Maria Eça de Queirós. Quis sempre ser cônsul, recusou uma hipótese (aliás, remota) de vir a ser embaixador no Brasil e António Nobre, que o visitou em Paris, descreveu a sua actividade consular como resumida a vir assinar o expediente ao consulado no fim da manhã. Trata-se, a meu ver, de uma injustiça. Eça levou muito mais a sério a profissão do que se pensa geralmente e quer os relatórios consulares que escreveu, quer a correspondência sobre o empréstimo que foi negociar a Londres estão aí para o testemunhar. O que se passou foi que Eça não escondeu o seu pouco interesse pela poesia de Nobre — e isso é algo que um poeta nunca pode perdoar!
no caso de Almeida Garrett, embaixador em Bruxelas (onde aliás se arruinou) e autor de uma inteligente análise de política internacional que é o Portugal na Balança da Europa, a sua hostilidade ao Partido Cartista e a funda antipatia que sempre por ele sentiu D. Maria II afastaram-no de mais altos voos na diplomacia. Tinha acabado de ser transferido de Bruxelas para Copenhaga, em 1835, quando a rainha, num seco despacho, o demitiu sumariamente... Mais tarde, sendo já rei D. Pedro V, chegou a ser ministro dos Negócios
148
Estrangeiros num governo de Saldanha... durante exactamente treze dias, de 4 a 17 de Agosto de 1852.
Mas, sem esquecer os portugueses que foram escritores e diplomatas, desde o Padre António Vieira à Marquesa de Alorna, passando por Guerra Junqueiro, Manuel Teixeira Gomes, Abel Botelho (estes três nomeados embai- xadores em 1911, pela recém-instaurada República Portuguesa), Wenceslau de Moraes, António Patrício, António Feijó, Guilherme de Castilho, Armando Martins Janeira, Albano Nogueira, o Marcello Mathias do Lusco Fusco, o seu filho Marcello Duarte Mathias, o Álvaro Guerra, o José Fernandes Fafe, o José Augusto Seabra, o Paulo Castilho, o Francisco Duarte Azevedo, volto agora para o lugar que escolhi, a poesia, para abordar a relação da poesia com a vida diplomática.
A imagem do poeta «maldito» e «associal», que tem ainda algum peso no âmbito dos lugares-comuns correntes, não pode deixar de ser associada à imagem do poeta como ser directamente inspirado pela divindade, como no Ion de Platão, detentor de um «dom divino» (Novalis), «legislador da Humanidade» (Shelley), o que forçosamente faz dele um xamã ou um ser predestinado para a luz ou para a desgraça. Como dizia Herberto Helder, no prefácio da sua antologia Edoi Lelia Doura:

Vejo eu mesmo, à custa de operações secretas — alimentos, silêncios — que me sustenho no âmbito mais avesso ao exterior de uma arte que é interna, arte cerrada a que se chega por dote e exercício próprios, das cercanias para o meio, um combate com as armas inocentes e astuciosas da magia, carne contra carne, imagens, sopro, os terríveis substantivos da terra, objectos vivos.

A esta imagem mágica e mística do poeta, proponho-me contrapor a ideia de John Keats:

O poeta, enquanto tal, não tem identidade — ele é tudo e nada — não tem perfil — goza da luz e da sombra. O que choca o filósofo virtuoso faz as delícias do camaleão que é o poeta. O poeta é o menos poético dos seres, porque não possui identidade: é certamente a menos poética criatura de Deus.

O poeta não é maior nem menor do que qualquer outro homem, não ouve nenhum deus dentro de si e não tem qualquer pacto com as armas ou as
149

astúcias da magia. As vozes que ele pode ouvir, sobre as falésias do Duíno ou ao volante do Chevrolet na estrada de Sintra, vêm daquele manancial interior de palavras e de ritmos a que Maiakovski chamava «as reservas poéticas» e que Valéry definia inteligentemente, dizendo que «só o primeiro verso nos é dado, todo o resto do poema é construído».
Como o diplomata que, ao serviço do seu país, vai absorvendo todas as culturas por que passa, o poeta absorve todas as experiências e todas as palavras, mas por fim vai tentar ser criador de mundos na linguagem, de mundos que vão sempre muito além do que ele próprio é e experimenta. Ou, como dizia Fernando Pessoa, «Não meu, não meu / é o que escrevo / a quem o devo?».
O poeta só existe e viaja nos poemas que escreve, nas palavras de que, como dizia Dag Hammarskjold, também poeta e diplomata, se serve como uma chave e não como uma gazua. Neste sentido, o diplomata é apenas o profissional que coexiste com o poeta — como todos nós coexistimos com os vários e diversos «eus» de que somos feitos.
150 

Sunday, January 5, 2014

Literatura e diplomacia: António Patrício (1878 - 1930)


REGRESSO

As janelas da casa em que eu nasci
já não sabem quem sou, não me conhecem.
Há cem outonos de alma que parti:
os longes da paisagem reverdecem.

A um canto, como outrora, o meu espectro,
o meu espectro de criança ainda,
cisma em reinos de fadas, tem o ceptro
contra a blusa de linho que o alinda.

Outros espectros vêm meigamente…
Mas só este agora me hipnotiza,
fechado em sua cisma, inconsciente.

E eu, que tinha vontade de beijá-lo,
quedo, gelado, temo até que a brisa
ou que um murmúrio de erva vá acordá-lo.

De Poesias


António Patrício (Porto7 de Março de 1878 - Macau4 de Junho de1930) foi um escritor ediplomata português.
Em 1908 conclui o curso de Medicina na Escola Médica do Porto. No ano de 1911 ingressa na carreira diplomática ao ser nomeado cônsul em Cantão, falecendo no ano de 1930, em Macau, quando ia tomar posse como ministro de Portugal em Pequim. A sua obra foi profundamente marcada pelas influências de Nietzsche, Maeterlinck e D'Annunzio, bem como pelas correntes literárias do simbolismo, do decadentismo e do saudosismo.

Biografia[editar | editar código-fonte]

Nasceu no Porto a 7 de Março de 1878, filho de Emília Augusta da Silva Patrício (doméstica) e de António José Patrício (armador e dono de uma agência funerária). A morte de três dos seus irmãos menores, vitimados pela tuberculose, haveria de o marcar para sempre.
Frequentou o Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto, prosseguindo os seus estudos na Academia Politécnica dessa mesma cidade, no curso de Matemática, embora não o tenha concluído.
Em 1898, durante o período em que cumpre o serviço militar, casa-se com Alice Minie Josephine d'Espiney. No ano seguinte nasce o seu primeiro filho, Emílio d'Espiney Patrício. Nesse mesmo ano, António Patrício parte para Lisboa onde frequentará a Escola Naval (1899-1901) A partir de 1901 dedica-se aos estudos de Medicina na Escola Médica do Porto, concluindo o curso no ano de 1908, sem nunca vir a exercer tal profissão.
Em 1910 toma a decisão definitiva em relação à sua vocação, escolhendo a carreira diplomática. Nesse mesmo ano é nomeado cônsul de 2ª classe em Cantão. Antes disso porém, notabiliza-se numa missão na Corunha, onde consegue impedir com sucesso a entrada de um carregamento de armas destinadas aos monárquicos portugueses presentes na Galiza e sob o comando de Paiva Couceiro. Seguem-se as missões em Manaus e Bremen. É afastado da diplomacia em 1918, após desinteligências com o general Sidónio Pais, então em ascensão. Regressa ao serviço no ano seguinte, sendo destacado para Constantinopla. Em 1920 sofre bastante com a morte de um dos seus filhos, António Patrício Júnior.
Passará ainda por Londres e Caracas antes de regressar a Portugal, em 1928, iniciando funções na Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Volvidos dois anos, é designado ministro de Portugal em Pequim, cargo que não chega a ocupar, vindo a falecer em Macau.

Obra literária[editar | editar código-fonte]

A actividade literária de António Patrício começa a ganhar fulgor a partir de 1905 com a publicação do seu primeiro livro, Oceano. Depois deste trabalho dedicado à poesia, segue-se a publicação de O Fim (1909) e Serão Inquieto (1910) (eBook). Estes dois livros iriam evidenciar a sua versatilidade como escritor, ao demonstrar-se um sólido dramaturgo e contista. O seu talento como dramaturgo daria origem, de resto, aos seus trabalhos mais conhecidos, que são as peças teatrais Pedro, o Cru (1918), Dinis e Isabel (1919) e D.João e a Máscara(1924).
Apesar destas surtidas no universo da composição dramática, Patrício era sobretudo um poeta, muito embora boa parte da sua obra neste campo só tenha vindo a lume postumamente. A sua poesia distingue-se pela sensibilidade, pelo rigor estético e formal imprimido às suas obras e ainda pelo fundo trágico que invariavelmente acaba por ter no Amor o seu tema predilecto. Cultivou o simbolismo, o decadentismo e o saudosismo, tendo sido colaborador das revistas ÁguiaAtlântida 1915-1920, Arte & vida 1904-1906 e Contemporânea 1915-1926 Em toda a sua obra perpassa a influência do niilismo de Friedrich Nietzsche, da concepção estática do dramatismo de Maurice Maeterlincke da expressão verbal intensamente trabalhada de Gabriele D'Annunzio.

(Wikipédia)

Literatura e diplomacia: o soneto de Steinbroken, requentado

Sou finlandês : meu coração é frio,
enquanto só nos dão vodka gelado!
Não sou pior que tu no desafio,
rico alemão que temes juro dado...

Inglês, tu deves e não temes, bem:
assim é que se porta um cavalheiro!
Franceses andam todos num vaivém,
ao sul falta-vos "rating" e dinheiro...

Sou finlandês : meu coração é frio.
Mas que querem que faça desta Europa?
No Mali falta o ganho, sobra o brio.
Há um cheiro de fascismo à nossa porta:

no Báltico, em Paris, pelo Danúbio
e por toda essa Europa num conúbio.

(revisão de um soneto publicado neste blog em Abril de 2011)

NOTA:

Conde de Steinbroken é uma personagem do romance Os Maias, de Eça de Queiroz.
Steinbroken é, durante o desenrolar da narrativa, diplomata e ministro da Finlândia em Portugal. É um frequentador dos serões d'O Ramalhete e amigo de Afonso da Maia.
A sua relação com a família Maia começa quando Afonso da Maia se disponibiliza a alugar umas cocheiras à embaixada finlandesa. Farto de tantas burocracias diplomáticas, Afonso acaba por doar as cocheiras. Steinbroken, assumindo tal acto como um serviço feito ao rei da Finlândia, visita Afonso da Maia com toda a Legação Finlandesa em Portugal. Afonso torna-se assim seu simpatizante, apreciando as suas qualidades de enologia e whist (um jogo de cartas da época).
Steinbroken é, também, um especialista em canto, sendo dotado de uma excelente voz, muita apreciada pelo Marquês, amigo de Carlos e regular convidado do Ramalhete.
Quando Carlos da Maia regressa de Paris, em 1886João de Ega informa-o que Steinbroken partira para a Legação Finlandesa em Atenas.
(Wikipédia)

Literatura e diplomacia: António Nobre

A VidaÓ grandes olhos outomnaes! mysticas luzes! 
Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes! 
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor 
Da capa d'Hamlet, das gangrenas do Senhor! 
Ó olhos negros como noites, como poços! 
Ó fontes de luar, n'um corpo todo ossos! 
Ó puros como o céu! ó tristes como levas 
De degredados!
Ó Quarta-feira de Trevas!
















(…)

Quantos são, hoje? Horror! A lembrança das datas… 
Olha essas rugas que têm certos diplomatas! 
Olha esse olhar que têm os homens da politica! 
Olha um artista a ler, soluçando, uma critica... 
Olha esse que não tem talento e o julga ter 
E aquelle outro que o tem... mas não sabe escrever! 
Olha, acolá, a Estupidez! Olha a Vaidade! 
Olha os Afflictos! A Mentira na Verdade! 

(…)

Ó meu amor! é para ver tantos abrolhos, 
Ó flor sem elles! que tu tens tão lindos olhos! 
Ah! foi para isto que te deu leite a tua ama, 
Foi para ver, coitada! essa bola de lama 
Que pelo espaço vae, leve como a andorinha, 
A Terra! 

    Ó meu amor! antes fosses ceguinha… 

(António Nobre, )


O Render dos Heróis


Wednesday, January 1, 2014

Literatura e diplomacia: D. Maria II recebe o encarregado de negócios em Bruxelas, Almeida Garrett (1835)


(…) a rainha recebe-o, ouve distraidamente o relato da passagem do consorte por Bruxelas. João Baptista, orador prolixo, valoriza a sua própria contribuição para o evento, reivindica influências em Bruxelas e intimidades na corte, sugere promoções, melhoria de estado, veneras, talvez recompensas, tenta adivinhar as reacções de Sua Majestade. Esta mal se apercebe do que o súbdito pretende: é bela, caprichosa, quase uma criança, só pensa no marido prestes a chegar, na cerimónia do casamento religioso, na mudança de vida que a espera. Garrett é - sabe-o vagamente - o encarregado de negócios em Bruxelas, um poeta que serviu o pai, um dos muitos portugueses que, como ela própria, andaram de exílio em exílio, da casa de Anás para a casa de Caifás, e agora aguardam a paga dos feitos cometidos e imaginados. Os Ficalhos, os chamorros, os cortesãos, o próprio Palmela, todos se referiam à peculiar maneira de vestir desse Garrett - ela dizia Garretti, à maneira brasileira -, aos costumes excêntricos do poeta e da mulher, ao despesismo do casal, à moralidade pouco convencional de ambos. "Mais poeta do que diplomata, mais dandy do que gentleman, mais parisiense do que britânico" - assim o caracterizara Palmela e, entre distraída e enfadada, a rainha admite a justeza do retrato feito pelo seu ministro favorito.

(Amadeu Lopes Sabino, A Lua de Bruxelas, Campo das Letras, 2000, p.115)   

Literatura e diplomacia: Chateaubriand, sem falsas modéstias, conta a sua duplicidade para com o colega português em Roma (1828)


D'abord vous remarquerez que j'ai l'oeil à tout:  que je m'occupe de Reschid-Pacha et de M. de Blacas; que je défends contre tout venant mes privilèges et mes droits d'ambassadeur à Rome; que je suis cauteleux, faux (éminente qualité!) jusque-là que M. de Funchal, dans une position équivoque, m'ayant écrit, je ne lui réponds point; mais que je vais le voir par une politesse astucieuse, afin qu'il ne puisse montrer une ligne de moi et néanmoins qu'il soit satisfait

Chateaubriand, Mémoires d'Outre Tombe. O diplomata português é Domingos de Sousa Coutinho, conde e depois marquês do Funchal, embaixador em Roma ao mesmo tempo que Chateaubriand. O ano é 1828.

Para um contraponto crítico, escrito anos mais tarde por um subordinado de Chateaubriand na sua embaixada:

Rien de moins justifié que la sévérité des jugements portés dans ses Mémoires par notre ambassadeur sur ses collègues du corps diplomatique à Rome, jugements dont M. de Marcellus a fait ressortir avec raison la notoire injustice. Le fait est qu’en sa qualité de grand politique, de poète et d’orateur, il ne laissait pas de s’exprimer sur le ton du dédain qui lui était habituel, au sujet des méchantes petites affaires quotidiennes et des puériles questions de forme et d’étiquette auxquelles les chancelleries des diverses légations à Rome avaient, suivant lui, le ridicule d’attacher une importance démesurée. En revanche, offusqués et quelque peu éclipsés aux yeux du public, par la réputation européenne du nouvel ambassadeur de France, les hommes du métier, habitués depuis de longues années à traiter avec le Vatican, contestaient l’aptitude de M. de Chateaubriand à soutenir les intérêts de son pays et à défendre avec succès, auprès du saint-siège, les causes dont il était chargé. 

(L'Ambassade de M. de Chateaubriand à Rome, conde d'Haussonville, Revue des Deux Mondes, 1885)

Mas o General De Gaulle, que prezava a escrita e os escritores, admirava Chateaubriand, embora achasse uma ave rara um grande artista dotado para a política:


« Chateaubriand aurait pu être un grand ministre. Je l'explique non point seulement par son intelligence aiguë, mais par son sens et sa connaissance de l'histoire, et par son souci de la grandeur nationale. J'observe également combien il est rare qu'un grand artiste possède des dons politiques à ce degré ».