Sunday, May 11, 2014

Um poema de Vítor Nogueira

Há poemas de outros que vêm de repente mesmo ao encontro do momento que estamos a viver.

Depois de Daniel Jonas, um poema de Vítor Nogueira:

CADÊNCIA

É dia de Natal, não sei se importa,
o primeiro desde a morte do teu pai.
Manuel, teu sogro, a fala toda entregue
ao AVC, suspende uma conversa de silêncios,
pedindo o aparelho de oxigénio. E lança-te

um olhar estranho, talvez por no seu íntimo
saber que vais usar a mesma pausa, na varanda,
para obedecer também ao ditame dos pulmões,
àquela dança antiga, àquele espantoso fumo
a erguer-se do cigarro. E nisto o coração

pede-te versos mais profundos. Encolhe
um pouco os ombros, limita-te a passar
de novo a lima entre as palavras e lembra
uma vez mais que a poesia é uma cadência,
há muito que nasceu entrelaçada com a música.

(Vítor Nogueira, Segunda Voz, Averno, Lisboa, 2014)


5 comments:

  1. Belos são os poemas que em síntese resumem a moral da história de uma vida, capturando as emoções dos momentos mais importantes convertendo-as na naturalidade da sede, promovendo o encontro final com a paz entre a amargura do mal feito e o perdão que vem no poema.

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  2. que comentário fará um medico deste poema que merece diagnosticos, etc

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  3. Todos nós merecemos diagnósticos, Patrício Branco...

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  4. Difícil este poema, meu caro Alcipe!
    Não sei, sequer, se gosto. Sei, isso sim, que ele se abeira de si, mesmo ao encontro do momento!
    Bjo

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  5. um tipo de poesia cultivado pelos ultra-romanticos, antonio nobre no seu "quando ela passa à minha porta", soares dos passos, etc.
    mas mesmo depois, existem muitos poemas da dor e da doença e do sofrimento, até fernando pessoa.
    são poemas dificeis, há que ter muita arte para o conseguir, conseguir o equilibrio entre o realismo e o lirismo.
    neste poema de nogueira parece que esse equilibrio não foi conseguido e o próprio poeta o reconhece ao dizer que o coração lhe pede versos mais profundos
    e que a poesia é uma cadência que nasceu entrelaçada com a música, embora ele encolha os ombros e deixe estar o poema como está.
    poema realista, cru, na 2a pessoa, o narrador está de fora e sabemos que manuel é o nome do sogro do genro a quem o poeta se dirige, etc etc

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