Thursday, December 5, 2013

Quando eu fui o "poeta-cônsul"

A separação entre a vida pública e o trabalho poético, que vimos exercida no seu máximo rigor por Saint-John Perse, acaba por ser, penso hoje, uma higiene de vida fundamental. O poeta está tão longe de poder ser o "legislador da humanidade", com que sonhava o adolescente Shelley, como se deve afastar da mistura enjoativa entre a aura poética e outras quaisquer auras, sejam elas a do cidadão exemplar, do lutador indómito, do bruxo da razão ardente ou do marginal maldito, repescado cada fim de semana pelas gazetas.

Para Wallace Stevens era certamente mais fácil não misturar a sua actividade poética com a direcção da  companhia de seguros para que trabalhava.  T.S.Eliot foi funcionário de um banco, antes de dedicar toda a sua vida profissional à edição, e disse sempre que um poeta deve ter uma profissão, porque a poesia é um trabalho intermitente e uma ligação infiel, ao contrário da prosa, que pode perfeitamente profissionalizar-se, conjugalizar-se e até mesmo burocratizar-se.

Quando estive no Brasil, onde a sociedade atribui valor simbólico à gente da cultura (ao contrário da nossa sociedade, que já só considera a gente do dinheiro), tive várias vezes oportunidade de jogar com essa mistura da minha condição de autor (nesse tempo escrevia mais) com o meu estatuto de cônsul. Embora o meu rigorismo, ligado à imagem ideal do poeta, me levasse a encarar sempre com receio tal mistura, devo reconhecer que esse duplo estatuto ajudou em muito o trabalho cultural e social que fiz no Rio de Janeiro (trabalho hoje esquecido, mas que valeu a pena e me valeu amigos) e não foi inútil portanto para a minha missão profissional (para além do extraordinário enriquecimento pessoal que me deu e dos grandes amigos que ganhei).

Várias pessoas me disseram que eu não voltara o mesmo do Brasil. Eu penso que os portugueses se descobrem a si próprios no Brasil com mais nitidez do que em qualquer outro lugar, nós que sempre démos o melhor que temos fora da nossa terra. "Para nascer Portugal, para morrer o mundo", como dizia o Padre António Vieira.

Foi o Abel Barros Baptista que, num texto de humor, me chamou uma vez "o poeta-cônsul".  



   

1 comment:

  1. joão cabral de melo neto escolheu terminar a sua carreira como cônsul geral no porto imaginando que seria sitio sossegado e iria finalmente e antes de se retirar poder dedicar se à sua poesia sem as funções o incomodarem e as solicitações sociais o sequestrarem. pois foi o contrario, as constantes solicitações por ser o poeta e escritor famoso que era cansaram-no e o posto saiu lhe caro.
    mas foi o poeta o responsável pela situação em que caiu no porto, não o diplomata cônsul.
    o que não será exactamente o caso da situação acima descrita, onde o poeta ajudou em muito o cônsul.
    e que dizer do exemplar caso de...
    etc etc

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