Cidadãos! Vejamos um pouco a nossa diplomacia.
Queixava-se há tempos o excelente Jornal da Noite que o Governo não publicasse os relatórios dos seus diplomatas, ministros, encarregados de negócios, secretários, etc.
Ingénuo Jornal da Noite! E o mesmo que censurar que se não fotografem os baixos-relevos
– de uma parede Lisa. Que quer o distinto redactor do Jornal da Noite que o
Governo publique? A diplomacia só tem a oferecer, como resultado dos seus trabalhos há vinte anos, o seu papel almaço – em branco. Se os nossos diplomatas quiserem um dia remeter para Portugal, em consciência, devidamente empacotados, os documentos do que nas suas missões criaram, organizaram, pensaram, trataram – a secretaria encontraria espantada, ao abrir o pacote:
Um montão de luvas gris-perle em mau uso!!
Se a esses cavalheiros que têm sido ministros e encarregados de negócios em
Londres, em Berlim, em Paris, em Madrid, em Bruxelas, em Estocolmo, em
Sampetersburgo, em Milão, em Roma, no Rio de Janeiro, em Viena de Áustria, em
Washington, com os seus secretários de embaixada, os seus adidos, os seus ordenados, despesas de representação, despesas de expediente, despesas secretas, etc., unia voz impertinente perguntasse: – «Como têm VV. Ex.as desempenhado as suas missões? Que tratados vantajosos têm alcançado para o nosso País? Que estabelecimentos portugueses têm lá favorecido? Que serviços internacionais têm regularizado? Que relações sólidas e protecções valiosas têm obtido para a nossa pequenina nação? Que estudos têm feito sobre a organização e instituições desses países? Em que sábios trabalhos as têm aconselhado para nosso progresso? Que conhecimento têm dado aos estrangeiros das nossas instituições, do nosso comércio, da nossa ciência! Etc.? Etc.?» – SS. Ex.as a tais interrogações ficariam pálidos de surpresa! Os nossos diplomatas inteiramente ignoram que estes sejam os seus encargos. Nenhum curso lhos ensinou, nenhuma lei lhos incumbiu. Eles seguem a velha tradição de que a diplomacia é uma ociosidade regalada, bem convivida, bem comida, bem dançada, bem gantée, bem voiturée, com bons ordenados e viagens pagas. Estão ali para serem diplomatas na gravata – e não para serem diplomatas no espírito: e achariam um abuso inclassificável que os tivessem nomeado para marcar o cotillon e no fim lhes exigissem relatórios. SS. Ex.as entendem que o País está bem representado desde o momento em que o seu colarinho é irrepreensível... E todavia SS. Ex.as estão representando uma nação – e não uma camisaria! Se SS. Ex.as vão unicamente encarregados de mostrar aos países estrangeiros a excelência dos nossos alfaiates – então o País não é o interessado, e o Sr. Keil que lhes pague! Se SS. Ex.as têm apenas por missão mostrar lá fora como o País dança bem, entendemos que SS. Ex.as prestam melhor serviço na sua pátria; e não ousando pedir ao
Governo que os faça recolher à secretaria, pedimos aos Srs. Valdez e Cossoul, empresários de S. Carlos, que os façam recolher ao corpo de baile!
O País conhece bem a nossa diplomacia: já a viu à luz da rampa, a um rumor de orquestra: já riu com ela, já lhe bateu as palmas: ela aparecia, esplendidamente real, na corte grotesca de S. A. a grã-duquesa de Gerolstein, poderosa princesa em três actos.
Era o barão Grog. O barão Grog, não se lembram? Somente a nossa diplomacia não usa rabicho, e curva-se com menos elegância. E o barão Grog conspirava! Os nossos nem sequer conspiram! Ele tinha graça, os nossos são lúgubres! Ele só nos custava um bilhete de plateia, os nossos custam-nos infinitos contos!
Evidentemente na organização da nossa diplomacia vamos seguindo um caminho imprevidente.
As habilitações que se exigem de um cidadão devem estar em harmonia com os serviços que se esperam dele. Não se requer, dos que pretendem ser lentes do Curso
Superior de Letras, que apresentem certidão de saber dançar dignamente o cancã. Ora se a missão de um diplomata é comer bem, dançar bem, vestir bem, parece-nos inútil que se lhe peçam provas de que conhece o direito internacional e a história diplomática! O mais trivial bom senso ordena que ele seja examinado simplesmente em pontos como estes:
Maneira mais própria de pôr a gravata branca, e suas divisões;
Método mais fino de comer a ostra; princípios gerais; aplicações;
Da valsa: teorias; questões principais; exemplos; etc.
Assim suponhamos que algum dos nossos mais nobres «vultos políticos», o Sr.
Braamcamp, por exemplo, pretende uma embaixada. Autorizam-no a isso a sua experiência e o seu critério. Que se lhe dê! Mas que antecipadamente S. Exª seja examinado na secretaria dos estrangeiros por um júri competente e recto:
Tenha V. Exª, Sr. Braamcamp (dirá o júri), a bondade de se sentar àquela mesa e comer aquele linguado frito, para nos provar que não lhe é estranho esse ponto da ciência diplomática...
E S. Exª tomando delicadamente o garfo, e na extremidade de dois dedos uma côdea fina de pão, com os braços unidos, a cabeça direita, os olhos baixos, provará a sua imensa competência naquela questão difícil.
– Tenha agora V. Exª, Sr. Braamcamp, a bondade de valsar um momento pela casa, com donaire...
E S. Exª arqueando molemente os braços, despedido em giros graciosos por entre as mesas da secretaria, com a cabeça meigamente reclinada, o olhar amoroso, a cintura mórbida, provará vitoriosamente que tem compulsado com mão diurna e nocturna todos
Os expositores daquela ilustre matéria.
(N. B. – Para que o concorrente não valse só, poderá utilizar-se como dama o contínuo da secretaria, que o examinando tomará nos braços com requebro meigo).
E aprovado que tosse o Sr. Braamcamp, ou outro cavalheiro, nos pontos sujeitos, o País podia entregar-lhe confiadamente uma missão numa corte estrangeira, certo que os seus interesses seriam ali dignamente – comidos e dançados!
Também nos ocorre que consistindo uma das principais funções dos secretários de embaixada e adidos em dançar nos bailes do Paço, a melhor maneira de alcançar um pessoal diplomático verdadeiramente superior seria escolhê-lo–no corpo de baile!
Ninguém teria então, entre a diplomacia europeia, mais graça, harmonia e ligeireza nos movimentos. E seria honroso para todos que os jornais estrangeiros pudessem noticiar:
«Chegou hoje a Srª Pinchiara, antiga primeira bailarina de S. Carlos, hoje secretário da embaixada portuguesa...
E mais tarde registassem para vaidade eterna da nossa Pátria:
«Ontem a maravilha no baile da corte foi a maneira adorável por que dançou a Srª
Pinchiara, secretário da legação portuguesa. Parecia um silfo, com os seus vestidos de gaze. Notou-se apenas que o sr. secretário da legação estava um pouco decotado de mais. É admirável a brancura do seu colo!...»
Igualmente nos parece vantajoso que o concurso para adido de legação verse, não sobre a ciência dos concorrentes–mas sobre a sua roupa branca. Se o dever essencial de um adido é a exposição solene dos colarinhos que se alteiam sob a suíça, dos Largos peitos de camisa que se arqueiam como couraças, e dos punhos que espirram para fora da manga com uma rijeza de aço – deve o Governo de S. M. utilizar para o serviço diplomático aqueles que, pela beleza e solidez dos seus engomados, melhor acreditarem lá fora as nossas instituições. E a diplomacia começará a dar garantias da sua eficácia, quando o Sr. X tiver conquistado os sufrágios do júri pelo brilho das suas camisas inglesas e pelo valor das suas peúgas – e o Sr. Y for plenamente reprovado por ter apresentado, por toda a ciência e experiência dos negócios, um reles colarinho à mamã!
Com entranhada mágoa o dizemos: os senhores diplomatas portugueses vestem-se de um modo a que só falta para ser distinto – ser inteiramente diverso do que é. SS. EXª ou se ajeitam pelo feitio nacional que tanto domina na Rua dos Fanqueiros, ou então adoptam o velho chique de boulevard, ainda do tempo do ministério Rouher, hoje unicamente usado pelos pollos de Madrid! Não seria pois fora de propósito que existissem na secretaria dos estrangeiros figurinos-modelos, com comentários e notas, que os senhores adidos deveriam estudar antes de encomendar as suas farpelas.
Outrossim se nos afigura imprudente que os srs. diplomatas possam fazer um fraque sem previamente levarem o corte e talhe à aprovação da comissão diplomática.
Igualmente pedimos ao Governo, em nome do País, que não deixe sair nenhum senhor diplomata sem previamente lhe ter examinado:
As unhas e a caspa do cabelo!
Uma das coisas que prejudica a nossa diplomacia é ela não possuir espírito. Ser espirituoso é metade de ser diplomata. A tradição clássica mostra-nos Talleyrand governando a intriga europeia com as finas decisões dos seus bons ditos: modernamente, desde Morny até ao sombrio Sr. de Bismarck, a diplomacia tem feito do espírito quase um método. O espírito move tudo e não responde por coisa alguma: ele é a. eloquência da alegria, e o entrincheiramento das situações difíceis: salva uma crise fazendo sorrir: condensa em duas palavras a crítica de uma instituição: disfarça às vezes a fraqueza de uma opinião, acentua outras vezes a força de uma ideia: é a mais fina salvaguarda dos que não querem definir-se francamente: tira a intransigência às convicções, fazendo-lhes cócegas: substitui a razão quando não substitui a ciência, dá uma posição no mundo, e, adoptado como um sistema, derruba um império. E, sobre-tudo pelo indefinido que dá à conversação, ele é a arma verdadeira da diplomacia. Ora, com compunção o dizemos, a nossa diplomacia não tem espírito. Seria por isso bem útil que o ministério dos estrangeiros examinasse os seus diplomatas, antes de os nomear, em pontos assim concebidos:
– Estando o senhor adido numa sala, e começando na rua a chover, que pilhéria deverá o senhor dizer?
– Num camarote de ópera, quais são as facécias que deve lançar um secretário de legação sobre o corpo de baile?
E seria conveniente que a secretaria possuísse uma lista de jocosidades, para todos os usos da vida, que os senhores diplomatas deveriam decorar:
Pilhérias para baile;
Ditas para almoço;
Ditas para cerimónias religiosas;
Ditas para recepções no Paço;
Ditas para entreter personagens célebres;
Ditas para enterro de pessoas reais, etc.
Concorre muito para que a nossa diplomacia não seja brilhante, o horror que o
País tem a ser representado por homens inteligentes. Não se pode dizer que isto proceda do amor de os possuir no seu seio: antes parece que o domina o terror de que eles vão destruir a reputação de embrutecimento que o País goza lá fora. A verdade é que, quando algum homem inteligente vai em missão diplomática, os jornais bravejam, e a opinião pública apita!
Se alguém ousasse, por arrojo absurdo, mandar em embaixada o Sr. Alexandre
Herculano, a Nação, de raiva, abria as veias! Por sua vontade o País enviaria às cortes estrangeiras, para ser representado dignamente – bacorinhos do Alentejo. Não o faz, porque, corno ao mesmo tempo é avaro e desconfiado, receia que as cortes estrangeiras, não podendo arrancar a tais diplomatas segredos políticos, lhes arrancassem – presuntos! Por isso manda homens. E só por isso!
Ao mesmo tempo o País gosta de pagar barato à sua diplomacia. E neste ponto abusa. Quer uma diplomacia bem fardada, bem bordada: e no fim se se lhe apresenta, por ter uma diplomacia, uma conta um pouco maior do que por ter um carroção – escandaliza-se e grita pelo sr. bispo de Viseu, D. António. De modo que um ministro plenipotenciário vê-se mais embaraçado com o rol das compras, que com o manejo das políticas!
Os diplomatas portugueses passam por agra. dar no estrangeiro pela sua palidez!
Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza de raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estrangeiras com respeito, é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o País – é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. E ainda veremos os jornais estrangeiros, noticiarem:
«Ontem, na Rua de... caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado.
Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade – era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.»
Que o País atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seu país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o País, no número do pessoal diplomático – diminua os adidos e aumente os bois.
Que a nossa diplomacia, aliás meritória e simpática, se não agaste com estes traços ligeiros! Quisemos apenas rire un brin. E nesta nossa triste terra, quando a gente se quer alegrar e folgar um pouco, tem de recorrer às instituições, que são entre nós – pilhérias organizadas funcionando publicamente.
(Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre)
interessante como eça se autofustigava ao fustigar os diplomatas portugueses, verdade que nunca teve grandes responsabilidades e devia fazer exactamente como descreve, optimo que assim tenha sido, os papeis do eça são afinal os seus romances e cronicas, uma vez lá fez um relatório sobre os chineses em havana (louvado pelos ecistas!!) mas seria assunto de algum interesse para portugal?
ReplyDeletemuitos dos escritos dos diplomatas eram a pedirem dinheiro, os seus salários que não chegavam, se atrasavam meses, é almeida garrett em bruxelas, teixeira gomes em londres, sem um tostão a sobreviverem e a disfarçarem, as contas da embaixada ou pessoais por pagar, ou como aquele cônsul geral que numa cidade portuasia do norte pedia 3 meses de licença para férias e se tratar em portugal pois o porto de mar gelava e não havia serviço importante a fazer de dezembro a fevereiro, isto por 1880, tempos de eça portanto, outro dos poucos papeis enviados pedia que a policia portuguesa enviasse uma delegação com 2 ou 3 cães policia para participar na demonstração internacional de cães policia que ia haver na cidade ou país onde estava e nem um cão com um policia apareceu, nem resposta teve, tambem em fins do sec 19, tempos de eça portanto, mas valeria a pena enviar papeis para lisboa?
e que papeis enviaria aquele marquês do funchal, embaixador em roma nos tempos do papado, tão mal educadamente descrito por chateaubriand nas suas memórias?
eça no paragrafo final explica que apenas quer fazer rir com a galhofa à custa dos seus colegas diplomatas, está bem mas...há que ler a crónica ao contrario, tomar atenção ao diplomata que caiu inanimado, ir a correr oferecer lhe um cafezinho quente com muito açucar comprado na leitaria proxima, ali«as o dono não quiz receber o preço, eça disse-o depois numa reunião com amigos, e que forças tinha esse homem para escrever papeis? etc etc
Meu caro Patrício Branco, contrariamente ao que você e o Seixas da Costa pensam, o Eca trabalhava, o Garrett tinha ideias claras sobre política externa ("Portugal na balança da Europa") e foi duramente perseguido pela Dona Maria II por ser do partido setembrista de Manuel Passos, isto e, da esquerda da época (veja as"Viagens na minha terra"), o Teixeira Gomes teve a missão espinhosissima de tornar credível a Republica em Londres, face a campanha negativa do Soveral
ReplyDeleteAgora diga-me quem era esse Consul numa cidade portuária do norte, que nao esta nas minhas fichas.
ReplyDeleteEm tempo: os chineses em Havana do tempo do Eca vinham traficados através de Macau.
ReplyDeletena verdade não me lembro do nome, lamento, tenho apontado nalgum sitio, foi por volta de 1870-85, a cidade era hamburgo, a correspondencia pode ler se nos arquivos históricos do mne, lá está em caixas de cartão, oficios copiados escritos à mão com bela e legivel letra de escriturário, não certamente do cg, o do convite para congresso ou demonstração de cães policias tambem aconteceu na mesma cidade, o que queria ir para portugal durante 3 ou 4 meses parecia realmente doente, suplicava, dava um pouco de pena e o argumento do porto gelado era credivel.
ReplyDeletebem, tenho alguma consideração por almeida garrett como diplomata, não muita, era parece me muito dandy, mundano, creio que aliava o receber irregularmente os dinheiros com gastos excessivos em roupas, joias para a mulher, jantares caros que oferecia sem ter os meios, etc, baseio me na "lua de bruxelas" de amadeu lopes sabino, como escritor grande respeito sim tenho (não li o estudo dele que refere), quanto a teixeira gomes tenho o maior respeito pela personalidade, foram os ingleses que o transportaram para portugal num navio da marinha deles quando foi designado como pr da republica dada a falta de meios de portugal, sinal que muito o consideravam como embaixador, bom escritor tambem, creio que é nas cartas de londres que se queixa da falta de envio de dinheiro etc
Excelente livro "A lua de Bruxelas" do Amadeu Lopes Sabino.
ReplyDeleteTambém tenho a dizer! Excelente blog, excelentes comentadores e uma excelente e deliciosa ironia.
ReplyDeleteObrigada, Senhor Embaixador.
Eu não queria bater mais no malho, que já está frio, mas cá o Eça tinha a verve do nosso eurodeputado António Correia de Campos, os senhores não acham?
ReplyDeletea) Feliciano da Mata, euro-fúnebre
Quando Eça escreveu "onde um embaixador português mais se demora (...) é diante das lojas de mercearia com inveja", não estava a fantasiar. Olhe-se o exemplo de Almeida Garrett que na sua corrspondência de Bruxelas para o Ministério se queixada de que não "tinha um só florim para comprar pão" e que "no momento em que me despir do caracter diplomático que me protege, serei sem piedade lançado n'uma cadeia pelos meus credores que todavia menos o são meus do que do governo de sua magestade, pois, apesar de tudo, eu não devo mais do que pelo thesouro me é devido".
ReplyDeleteOxalá a troika e seus fiéis seguidores não obriguem a que se repitam situações como esta.
Leão do Amaral