O funcionário cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
e as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só
António Ramos Rosa,
in "Viagem através duma nebulosa", 1960
tema pelos vistos tratado com frequência, situação laboral existencial confessada:
ReplyDeleteCansaço do funcionário
Deixará de ser o burocrata meticuloso
o fingido funcionário realista
agora que um cansaço chega
logo de manhã sem razão ou aviso.
Agora que quase não sobra coragem
para fazer o chá do pequeno-almoço
e nem fome ao certo sabe se sente.
Por fim o chá bebe e algo come.
Depois, enche a pasta onde inclui
livro, carteira, memórias, chaves
papeis, caneta, outras possibilidades.
Mas seu braço do muito peso incha
os tendões reclamam, o pulso envelhece.
Digo-lhes então que vai deixar de ser.
Jaime Borges
o chefe apanhou-me com o olho lírico
ReplyDeleteora aqui está um verso que f pessoa gostaria de ter escrito...