Wednesday, January 9, 2013

Nesse tempo

    
                     NESSE TEMPO É QUE ERA BOM

Os pobres ficavam à porta à espera que
lhes levassem a comida. Olhavam para dentro da casa, às escondidas,
e viam as paredes de mármore, o chão de azulejos, as escadarias
de pedra, as portas de grandes salões onde nunca iriam
entrar. Quando lhes traziam os restos de comida, embrulhados
em papel, pegavam neles, de olhos no chão, e iam-se
embora sem uma palavra. Nunca soube
se os comiam, às escondidas, para que
outros não tivessem a tentação de lhes roubar
as sobras do banquete; se os levavam para o casebre,
e os partilhavam com os filhos que tremiam de febre,
embrulhados em mantas; ou se iriam ser atacados
pelas matilhas de cães tão esfomeadas como
eles. Os pobres não sabiam o que fazer
com as suas vidas; mas eu sabia o que lhes iria
acontecer de cada vez que ouvia o sino dobrar,
e corria para o cemitério onde o coveiro,
com todo o tempo do mundo, cavava um buraco,
dando tempo ao corpo, embrulhado na manta
grosseira, para arrefecer, até ser deitado na cova.

(Nuno Júdice, Fórmulas de uma luz inexplicável, Dom Quixote, 2012)



5 comments:

  1. Este texto secou-me a boca e molhou-me os olhos.
    Bem haja querido Alcipe

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  2. E eu a dizer que não quero ver Hopper porque os meus olhos se embaciam...
    Já é tempo de dizer publicamente o quanto gosto deste espaço.
    Muito obrigada.

    Maria Helena

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  3. Pois aqui vão umas lágrimas que este texto - como muitos outros desse admirável Nuno Júdice - soltaram a esta terceira Helena.

    PS Muitas Helena's o lêem...

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  4. " criei uma nova palavra: helenamente" ( Ruy Belo)

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    1. Ah! o que esse mafarrico sabia. E que belos alguns poemas seus!

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