Thursday, January 10, 2013

O nada que é tudo


Poema em Linha Recta' de Álvaro de Campos


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso, arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas do hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,


Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste mundo que me confesse que uma vez já foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos

7 comments:

  1. verifico que cada um dos versos é um poema enorme e associo-os com “o homem nâo é um animal/ é uma carne inteligente/ embora às vezes doente” do pessoa ele mesmo.

    ReplyDelete
  2. Curiosamente, sendo de uma oportuna verdade, tem algo que me desagrada.
    A minha relação com Fernando Pessoa e seus clones foi e é tempestuosa, pese embora a barbaridade que esta afirmação representa para os pessoanos que conheço.
    Eu sou mais Eugénio de Andrade...pese embora o lado politicamente incorrecto da preferência!

    ReplyDelete
  3. Politicamente incorrecto? Porque? Homessa...

    ReplyDelete
    Replies
    1. Porque os pessoanos que conheço julgam esta minha preferência algo inexplicável. Como calcula, há muita gente que considera Pessoa o maior. Para mim, é Eugénio. Que tenho sempre à cabeceira e que muito me ensinou sobre o Amor.
      Acontece o mesmo com Agustina que me ajudou a ser quem sou. Há casos assim, de amor literário do tipo coup de foudre. Consegue entender-me?!

      Delete
    2. Quanto à Agustina, totalmente de acordo. O Eugénio é um grande poeta, dos grandes poetas portugueses do século XX, mas ultimamente, não sei porquê, diz-me menos. O Pessoa desperta afectos opostos, o meu amigo Vasco Graça Moura também não engraça com o Pessoa...mas opõe-lhe o Camões, nada menos! Eu pessoano me confesso.

      Delete
  4. É muito bom. Cru. Difícil. Para mim é sempre um soco.
    Não fujo, o enfrento.

    ReplyDelete
  5. Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

    Álvaro de Campos

    Oh,Que ideia meu Grande amor!!!
    (Basicamente porque impossivel, hum que alivio por segurança...)
    Só Tu, de facto...Ai...Tens cada uma(...)


















    ReplyDelete