Gabo tinha chegado a Lisboa depois de um voo atribulado. «Ele tinha um medo danado de viajar de avião, até chegou a escrever uma crónica sobre o assunto», conta Jaime García Márquez, irmão do escritor, no alto de um terraço com vista para a catedral de Cartagena de Índias. Está um dia quente e húmido, como são todos os dias na cidade caribenha. O escritor mora parte do ano ali perto, numa casa de muros vermelhos e altos. Não dá entrevistas, não faz aparições públicas e, anunciou o irmão mais novo, não voltará a escrever. Tem 86 anos e um diagnóstico de demência que lhe secou as palavras. «Pois Gabo, que nunca foi religioso, nesse voo para Portugal encomendou duas ou três vezes a alma à Virgem de Guadalupe. Ele costumava dizer que o único medo que um latino confessa é o de viajar de avião. E é verdade.»
Ao lado de Gabriel García Márquez viajava Alfonso Fuenmayor, um jornalista de Barranquilla, de quem se tornara amigo, duas décadas antes, na redação do El Heraldo. Nesse tempo, Gabo era vice-presidente do Tribunal Russell, o tribunal internacional de crimes de guerra. Com a chegada de Pinochet ao poder no Chile e a ditadura militar brasileira numa das fases mais ferozes, havia a hipótese de abrir uma secção para a América Latina em Lisboa. Alfonso, que andava em viagem pela Europa, veio para dar uma ajuda na avaliação. Mas com o Verão Quente em pleno, a instabilidade política no país encarregar-se-ia de anular o projeto.
Ficaram instalados no Ritz e, escreveu García Márquez no seu artigo, durante uma boa parte da estada só havia dois hóspedes no hotel - eles. «Lisboa é uma das mais belas cidades do mundo e, até há um ano, era também uma das mais tristes, por obra de uma rara ditadura medieval que durou quase meio século e cuja força se fundava numa polícia política inclemente. É um país de pobres que enfrenta obstáculos terríveis e uma pressão tremenda. Por causa da sua posição geográfica, está obrigado a sentar-se de sapatos rotos e casaco remendado na mesa dos mais ricos e sofisticados do mundo.» Gabo considerava que a sociedade portuguesa era mais próxima da sul-americana, mas que o país tinha uma espada sobre a cabeça para se tornar europeu. «Nos restaurantes caros, os mariscos exibem-se como joias nas vitrinas, mas são intocáveis, um luxo burguês. Nos restaurantes populares, onde se come um delicioso arroz com sangue de galinha, os empregados debatem-se com uma dúvida: no regime atual, é justo que recebam gorjeta?»
Um dia depois da sua chegada a Lisboa, os primeiros deputados eleitos em liberdade tomavam posse no Parlamento. Gabo decidiu fazer a cobertura da sessão solene de abertura da Assembleia Constituinte e, aí, cruzou-se com alguns dos mais emblemáticos nomes das letras portuguesas. Juntou-se um grupo que acabaria por ir jantar nessa noite à Varanda do Chanceler, um restaurante de Alfama (o mesmo onde Natália Correia haveria de apresentar Francisco Sá Carneiro a Snu Abecassis). No repasto estavam José Cardoso Pires, Fernando Namora e Luís de Sttau Monteiro. Também estava presente o poeta José Gomes Ferreira, na altura presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores.
Esse encontro com García Márquez causou forte impressão em Gomes Ferreira. O poeta português - cujo poema Acordai, musicado por Lopes-Graça, tem servido de hino a vários protestos recentes - escreveria até algumas notas, após uma conversa com o escritor colombiano. Estes escritos nunca foram publicados, são inéditos e íntimos, papéis em bruto. Foram cedidos pelo seu filho, o arquiteto Raul Hestnes Ferreira. «García Márquez, à despedida, disse-me: "Buena sorte!" Tremi. O García Márquez: "Os portugueses são muito parecidos com os latino-americanos. Os espanhóis são mais severos, mais hirtos. Mais senhores solenes. Anos de tempestades".» Em 3 de junho, nova entrada no diário, um quase-poema: «Quando o García Márquez se despediu, desejando-me buena sorte, lembrou-se do Chile. Felizmente é a própria morte que me defende da morte. Que me importa viver mais um dia ou menos um dia? Sim, importa - diz-me a boca de uma nuvem que me acompanha noite e dia.»
O que vai dar cabo da revolução é a conta da luz
A partir daquele jantar na Varanda do Chanceler, Gabo não voltou a estar sozinho em Lisboa. «Entre entrevistas com Vasco Gonçalves, Melo Antunes e Saramago, que nessa altura estava no Diário de Notícias[era director adjunto]», lembra Ernesto Santos Calderón, um dos mais importantes jornalistas da Colômbia, um dos melhores amigos de García Márquez e um dos fundadores da Alternativa, «também fez muitos amigos e divertiu-se bastante em Lisboa».
José Carlos Vasconcelos, diretor do Jornal de Letras, lembra-se de ver o escritor colombiano na festa de aniversário de José Gomes Ferreira, na noite de 9 para 10 de junho, e novamente na Varanda do Chanceler. «Brincávamos todos juntos a dizer que o Gomes Ferreira tinha a mania das grandezas, queria nascer no dia de Camões.» Maria Velho da Costa conheceu García Márquez em casa de Sttau Monteiro. «Aquilo era para ser uma festa, mas estava a tornar-se numa tertúlia, era uma chatice tremenda. Às tantas Gabo perguntou-me se queria fugir dali.» Despediram-se rapidamente, saíram, apanharam um táxi para o Bairro Alto. «A minha memória funciona por imagens fotográficas», diz a escritora. «Lembro-me de descermos a rua em conversa animada. Lembro-me de que ele usava um fato de ganga, calças e casaco. E lembro-me de ficarmos umas boas horas num bar, a conversar e a beber whisky.» Às tantas, o colombiano disse que à revolução portuguesa não faltava heroísmo, faltava prudência e imaginação. «Então estamos bem tramados», respondeu Maria Velho da Costa. «Porque o povo português é como o diabo, sabe mais por velho do que por ser povo.» Essa sentença, descobriu a escritora portuguesa há uns dias, foi a frase com que García Márquez rematou a sua última reportagem em Portugal.
A amizade mais estreita de Gabo em Lisboa era, no entanto, com o autor de Balada da Praia dos Cães. Tinham-se conhecido anos antes em Londres, quando ambos trabalhavam para o serviço internacional da BBC. Edite Cardoso Pires recorda-se dos encontros no terraço do Hotel Mundial, com vista para o Martim Moniz, epicentro da multiculturalidade da cidade. «A influência negra é notável em Portugal, manifesta-se mesmo no caráter dos portugueses», escreveu García Márquez. «E todo o país está saturado pela música quente de Cabo Verde e Angola, que parece a música do nosso trópico.» Era 1975, ano de independência das colónias. Gabo apanhou em cheio a chegada de refugiados, portugueses e africanos, e o regresso de soldados do ultramar. Em 1976, haveria de viajar várias vezes para Angola e escrever um artigo para aAlternativa sobre os novos ares de liberdade e as pressões que vinham de fora, fossem elas de Cuba ou da África do Sul.
A teoria que Gabo expressou nos seus textos não era apenas a de um país cercado, era também o de um país dividido. «Desde a praça do Rossio até ao canto mais remoto e esquecido da província, não há um centímetro de parede, nem um sinal de trânsito, nem o pedestal de uma estátua que não tenha sido pintado com uma mensagem política. Os comunistas pedem unidade sindical. Os socialistas dizem que socialismo sim, mas com liberdades. A extrema-esquerda protesta contra o imperialismo capitalista, os liberais dizem que o voto é a arma do povo e os anarquistas contestam,que a arma é que é o voto do povo. À noite, a reação lança granadas contra as lojas, envenenando o mundo inteiro com o rumor infame que o Portugal formoso e tranquilo das canções morreu.»
Ao mesmo tempo, o povo parecia querer ignorar as rivalidades, entregando-se à embriaguez feliz de Abril: «O erotismo invadiu os cinemas e os quiosques de jornais, fazendo que milhares de espanhóis atravessem ao fim de semana a fronteira para poderem ver o filme mais proibido em Madrid, O Último Tango em Paris.Lisboa tornou-se uma cidade movimentada, com acidentes de viação espetaculares, não só porque os portugueses conduzem de uma maneira intrépida, mas também porque estão genuinamente contentes - e por isso deixaram de respeitar os semáforos.»
Há uma prudência enorme nos textos de Gabo sobre Lisboa, o escritor quase anuncia que a Revolução tem os dias contados, que a Europa, os Estados Unidos e as divisões internas arrastarão inevitavelmente o país para longe da sua essência. García Márquez teme o rumo que as elites estão a tomar, mas encontra nobreza no povo. «Toda a gente fala e ninguém dorme, às quatro da manhã de uma quinta-feira qualquer não havia um único táxi desocupado. A maioria das pessoas trabalha sem horários e sem pausas, apesar de os portugueses terem os salários mais baixos da Europa. Marcam-se reuniões para altas horas da noite, os escritórios ficam de luzes acesas até de madrugada. Se alguma coisa vai dar cabo desta revolução é a conta da luz.»
(Ricardo J. Rodrigues, no Diário de Notícias, 2009)
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