Friday, February 28, 2014

Lançamento de "A Misericórdia dos Mercados", Livraria Barata, Lisboa, 25 de fevereiro de 2014



Da esquerda para a direita: Fernando Pinto do Amaral, Luís Filipe Castro Mendes, Vasco David

"Ode à Incompreensão" de Jorge de Sena

ODE À INCOMPREENSÃO

De todas estas palavras não ficará, bem sei,
um eco para depois da minha morte
que as disse vagarosamente pela minha boca.
Tudo quanto sonhei, quanto pensei, sofri,
ou nem sonhei ou nem pensei
ou apenas sofri de não ter sofrido tanto
como aterradamente esperara -
nenhum eco haverá de outras canções
não ditas, guardadas nos corações
alheios, ecoando abscônditas ao sopro do poeta.
Não por mim. Por tudo o que, para ecoar-se,
não encontrou eco. Por tudo o que,
para ecoar, ficou silencioso, imóvel -
- isso me dói como se ausência a música
não tocada, não ouvida, o ritmo suspenso,
eminente, destinado, isso me dói
dolorosamente, amargamente, na distância
do saber tão claro, da visão tão lúcida,
que para longe afasta o compassado ardor
das vibrações do sangue pelos corpos próximos.
Tão longe, meu amor, te quis da minha imperfeição,
da minha crueldade, desta miséria de ser por intervalos
a imensa altura para que me arrebatas
- meu palpitar de imagem à beira da alegria,
meu reflexo nas águas tranquilas da liberdade imaginada-,
tão longe, que já não meus erros regressassem
como verdade envenenando o dia a dia alheio.
Tão longe, meu amor, tão longe,
quem de tão longe alguma vez regressa?!
E quem, ó minha imagem, foi contigo?
(De mim a ti, a mim,
quem de tão longe alguma vez regressa?)
9/10/49 – rev. 1950

Thursday, February 27, 2014

Os livros mortos

Alguns dizem não deixaremos a poesia,
ela atravessará connosco a miséria do mundo
e aonde quer que cheguemos ela falará por nós.
Outros pensam só num resto de decência,
para a proteger com as mãos, como uma frágil chama
se protege do vento.

Eu não sei. Todos os poemas queimados em praça pública
por louros estudantes arianos e belos,
todos os poetas exilados
em campos de trabalho e redenção pelo povo,
todos os que tiveram de passear
sob apupos e com orelhas de burro na cabeça,
porque burgueses afinal burgueses,
todos esses tiveram o seu prémio afinal.

Para os novos senhores é indiferente:
um simples jogo de linguagem sem pertinência
e sem valor acrescentado nas palavras
não lhes merece qualquer menção. Deixam-nos para trás,
porque somos todos nós afinal tão supérfluos e irrelevantes
como as palavras que caem
dos nossos livros mortos*


*(guilhotinados, sim, guilhotinados,
como a pobre Maria Antonieta,
depois da gaffe dos brioches).

Ao fim de um determinado número de anos (dez a quinze), todos os exemplares não vendidos de uma edição de um livro são guilhotinados (destruídos) pelos editores

(nota do autor)






Tuesday, February 25, 2014

Thursday, February 20, 2014

Continuação da conversa com o jovem poeta

Se olhar com atenção a sua cara no espelho,
se ouvir a sua voz gravada,
se olhar os seus gestos num filme,
será desde logo evidente para si
que é outro quem ali está
a representar o seu papel.

A poesia, senhor Kappus, é apenas levar a sério
e até ao fim
este estranhar-se longe de si próprio e ...
desculpe, quer dizer alguma coisa?

Primeiro estranha-se, mas depois entranha-se,
já que a qualidade do nosso vinho, Senhor Poeta,
melhorou muito desde os tempos do Abel
Pereira da Fonseca e é hoje mesmo
o orgulho das nossas exportações, sapatos
à parte.

Um tiro de pistola no meio de um concerto,
era assim que Stendhal considerava
a introdução da política na literatura.
O Sr. Kappus prefere a bebedeira,
o que é típico destes pobres países do Sul,
onde a ética protestante não conseguiu ainda
converter inteiramente todas as dívidas em culpas.
Por hoje, terminámos. Voltamos a encontrar-nos
no dia combinado.






Tuesday, February 18, 2014

Um livro novo

FALA DO QUE NUNCA PLANTOU UMA ÁRVORE AO LIVRO QUE VAI PUBLICAR


És como um filho adulto:
tens o teu pensamento próprio.
Os outros gostam ou não de ti, independentemente
do que eu possa pensar ou sentir. Não te estranho, apenas
deixaste de fazer parte de mim.
Faço-te perguntas,
mas não sei o que responda quando me perguntam por ti.


Ao contrário dos meus filhos, não te amo.
Mas tremo por ti como tremo
por um filho.

Dos mercados

PARAFRASEANDO JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS


Adam Smith, visita
da casa da minha avó,
acharia bem esquisita
esta finança sem dó.
Adam Smith diria,
com uma cara de tédio:
"a licença dos mercados
não faz o livre comércio,
nem as especulações
são Riqueza das Nações".
Mas o Adam é careta
e queria regulação...
Para ele bola preta
e para nós reinação!







Regresso a Pompeia

Paul Alfred de Curzon, Sonho nas Ruínas de Pompeia

A misericórdia dos mercados



Velázquez, La Rendición de Breda

Saturday, February 8, 2014

Da Poesia

SONETO

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira, in «Trabalho Poético». Ed. Assírio & Alvim.
1

Sunday, February 2, 2014

Os mercados cantam

Um poema espanhol de Vasco Graça Moura

prado : la danaé de ticiano

la luz en los museos no me gusta:
hay que buscar el punto más neutral
para el mirar el cuadro, desde el cual
brilla otra luz, más interior, más justa.

pero en el prado esta mañana he visto
la claridad vibrante del comienzo
del mundo que inundaba ahora un lienzo,
cambiando en lluvia de oro, hambriento y listo,

al diós que así buscó nuevo disfraz
para acercarse al lecho en medio a sedas
y a dánae exaltada, hecho monedas
de eternidad metálica y fugaz,

bajo la luz que en los museos me irrita
y aquí se hace placer cuando palpita.

24.11.98


Encontros em Estrasburgo

Na sede local da University of Syracuse, sobre o Ill, no bem denominado Quai Rouget de l'Isle, encontro com quatro poetas escoceses: Iain Bamforth, que aqui vive e trabalha, e três outros poetas, igualmente editados pela Carcanet, David Kinloch, Peter Mc Carey e Richard Price.

De Iain Bamforth, deixo aqui uma excelente tradução de Fernando Pessoa:

They say I fake or lie
With the written word. Not a bit.
It’s simply that I
Feel with a kind of wit.
Heart doesn’t come into it.
All I put up with or embrace —
Hurts and harms, life’s only end —
Is like a level space
Hiding the space beyond.
Some enchanted place!
And this is why I write
As if I’d taken flight
From suffering and the real,
Serious about what isn’t.
Feel? — Let the reader feel.

Dizem que finjo ou minto 
Tudo que escrevo. Não. 
Eu simplesmente sinto 
Com a imaginação. 
Não uso o coração. 

Tudo o que sonho ou passo, 
O que me falha ou finda, 
É como que um terraço 
Sobre outra coisa ainda. 
Essa coisa é que é linda. 

Por isso escrevo em meio 
Do que não está ao pé, 
Livre do meu enleio, 
Sério do que não é, 
Sentir, sinta quem lê! 

Saturday, February 1, 2014

Resposta



Sim, andei por fora,
por vezes não reconheço as ruas da minha cidade
e há rostos que me envelhecem o coração.
Mas não tenha dúvidas, não precisa de fazer perguntas,
de ficar atento aos meus mínimos movimentos,
de esboçar por dentro de si o desenho
daquilo a que chama a minha alma.
Os comboios param em estações abandonadas, noite dentro,
e nós saímos como passageiros estremunhados e engelhados pelo frio
para cidades desconhecidas, belas e desertas
como todo o tempo que passou.
Sim, eu sei que estou a fugir ao assunto.
Importa-se de repetir a sua pergunta?