Thursday, October 27, 2011

Poema


Cada poema tece a sua noite
e nessa noite ele irá ser escrito,
posto em palavras, face
à perdida música.

Sunday, October 23, 2011

A joy forever


Não fales das cidades que vivemos,
onde a memória do que fomos vai morrer
quando não mais vier um amigo trazer-nos
a luz que atravessámos e dizer

que mais que o peso opaco da memória
vale a comum alegria que é vitória.


O nu azul de Matisse



O desejo não sobrevive à arte,
que é apenas uma forma mais trabalhada
do comum medo da morte: por isso este nu,
na sua negação de fantasias eróticas
com Vénus passadas ou futuras,
nos remete sem contemplações ao essencial
das coisas, à opacidade material e sem alternativa
de um corpo.


O poema que não irei escrever


O poema que eu sei nunca irei escrever
atravessa os meus dias como sombra incisiva,

destacada, precisa, inscrita no destino,
como folha a nascer, como folha caída,

cada outono a cair, cada ano prometida.

Saturday, October 22, 2011

Camões: resposta a um inquérito do JL


A propósito da recente publicação do "Dicionário de Camões", da autoria do Prof. Vítor Manuel Aguiar e Silva, dei o seguinte depoimento ao JL, publicado no seu último número:


1 - Há algum verso de Camões que saiba de cor, costume citar ou de que goste particularmente? Qual? Porquê?


2- Camões foi de alguma maneira marcante no seu percurso literário? O que em especial sublinharia na sua obra?


3- Qual a importância de um dicionário como aquele que agora foi publicado para uma leitura de Camões hoje?



1 – Costumo citar dois versos de Os Lusíadas, de que gosto muito: “Tu, só tu, puro amor, com força crua,/ que os corações humanos tanto obriga”. Evidentemente pela referência à narrativa da tragédia amorosa de Inês de Castro, mas sobretudo pela sua força sonora. É a musicalidade que me atrai particularmente nestes versos. Há um outro da Canção IX, que poderia citar: “Era razão ser a razão vencida”. Aí mais pela força intelectual. Esse é um verso belíssimo, que de resto Jorge de Sena analisou muito bem enquanto pensamento dialéctico. Porque aparece aqui uma razão superior à razão, tal como numa síntese hegeliana.

2 – É evidente que foi muito marcante. Camões é o grande poeta da língua, fundamental para a música da Língua Portuguesa. Não quer dizer que a música da língua não esteja presente nos nossos trovadores, nos poetas medievais, na poesia da Corte, mas foi com Camões que se atingiu o cimo dessa vertente. Isto além de toda a riqueza cultural e temática quer da lírica, quer da épica. E não prefiro uma à outra. Todo o Camões é extraordinário. A épica tem coisas maravilhosas, mas também as encontro na lírica, nos sonetos, claro, mas de igual modo nas canções. É realmente o grande marco de grandeza da poesia portuguesa. Usando a terminologia de Harold Bloom, poderemos mesmo falar de uma “angústia da influência” em relação a Camões, o antepassado contra o qual se medem todos os poetas portugueses. E penso que, de fato, toda a poesia portuguesa é marcada de alguma maneira por essa figura incontornável. Bocage diz “Camões, grande Camões, quão semelhante…”, mostrando a sua admiração incondicional, mas Pessoa também estava obcecado com a construção de um super-Camões, que no fundo é um anti-Camões. A Mensagem é um anti-LusÍadas, posicionando-se assim o nosso outro grande poeta numa espécie de rivalidade ou antagonismo. Esse fenómeno dá bem a medida da importância da obra camoniana.

3 – Vindo do prof. Vítor Aguiar e Silva, um dos maiores e mais competentes estudiosos camonianos, o dicionário que vai ser publicado será com toda a certeza uma obra fundamental. Sem menosprezo por outros importantes trabalhos e sem querer ser injusto em relação a outros grandes camonianos, recordo os estudos de Jorge de Sena e de Vasco Graça Moura. Do ponto de vista do meu trabalho poético, foram as interpretações de Camões que estes autores deixaram que mais me vieram influenciar, não sendo eu nem um erudito, nem um investigador, nem um teórico da literatura. E claro que também os estudos de Vítor Aguiar e Silva foram extremamente importantes para mim, como autor e leitor de poesia. A sua obra é de facto magistral e é evidente que este será um dicionário que irei ler com toda a atenção.

Notícias do meu país

Friday, October 21, 2011

Carta de marinheiro


Manobra de fundear:
algum dia teremos que acabar a viagem
e deixar o barco bem ferrado com o vento a soprar à volta.

Mas o que escolheremos deixar?


Thursday, October 20, 2011

Wednesday, October 19, 2011

Tuesday, October 18, 2011

Thursday, October 13, 2011

A nossa condição


"Qu'on s'imagine un nombre d'hommes dans les chaînes, et tous condamnés à la mort, dont les uns étant chaque jour égorgés à la vue des autres, ceux qui restent voient leur propre condition dans celle de leurs semblables, et, se regardant les uns les autres avec douleur et sans espérance, attendent leur tour: c'est l'image de la condition des hommes."

(Pascal, "Pensées")

Saturday, October 8, 2011

Poema de Tomas Transtromer sobre o Funchal

FUNCHAL
[poema de Tomas Tranströmer]

O restaurante do peixe na praia, uma simples barraca, construída por náufragos.

Muitos, chegados à porta, voltam para trás, mas não assim as rajadas de vento

do mar. Uma sombra encontra-se num cubículo fumarento e assa dois peixes,

segundo uma antiga receita da Atlântida, pequenas explosőes de alho.

O óleo flui sobre as rodelas do tomate. Cada dentada diz que o oceano nos quer

bem, um zunido das profundezas.

Ela e eu: olhamos um para o outro. Assim como se trepássemos as agrestes colinas floridas, sem qualquer cansaço. Encontramo-nos do lado dos animais, bem-vindos, não

envelhecemos. Mas já suportámos tantas coisas juntos, lembramo-nos disso,

horas em que também de pouco ou nada servíamos ( por exemplo, quando

esperávamos na bicha para doar o sangue saudável – ele tinha prescrito uma

transfusão). Acontecimentos, que nos podiam ter separado, se não nos tivéssemos

unido, e acontecimentos que, lado a lado, esquecemos – mas eles não nos esqueceram!

Eles tornaram-se pedras, pedras claras e escuras, pedras de um mosaico desordenado.

E agora aconteceu: os cacos voam todos na mesma direcção, o mosaico nasce.

Ele espera por nós. Do cimo da parede, ele ilumina o quarto de hotel, um design,

violento e doce, talvez um rosto, não nos é possível compreender tudo, mesmo

quando tiramos as roupas.

Ao entardecer, saímos. A poderosa pata, azul escura, da meia ilha jaz,

expelida sobre o mar. Embrenhamo-nos na multidão, somos empurrados

amigavelmente, suaves controlos, todos falam, fervorosos, na língua

estranha. “um homem não é uma ilha. Por meio deles fortalecemo-nos, mas

também por meio de nós mesmos. Por meio daquilo que existe em nós e que os

outros não conseguem ver. Aquela coisa que só se consegue encontrar a ela

própria. O paradoxo interior, a flor da garagem, a válvula contra a boa escuridão.

Uma bebida que borbulha nos copos vazios. Um altifalante que propaga o silêncio.

Um atalho que, por detrás de cada passo, cresce e cresce. Um livro que só no escuro

se consegue ler.

Luís Costa (Portugal, 1964). Poeta e ensaísta. Inédito em livro. A tradução do poema de Tomas Tranströmer, feita por Luís Costa, tomou por base a versão alemã, realizada por Hans Grössel e incluída em Der Mond und die Eiszeit (1992), antologia do poeta sueco. Contacto: l.costa@web.de.

Friday, October 7, 2011

Um allegro de Haydn

Tomas Transtormer ouvindo Haydn

Allegro
by Tomas Transtormer

After a black day, I play Haydn,
and feel a little warmth in my hands.

The keys are ready. Kind hammers fall.
The sound is spirited, green, and full of silence.

The sound says that freedom exists
and someone pays no taxes to Caesar.

I shove my hands in my haydnpockets
and act like a man who is calm about it all.

I raise my haydnflag. The signal is:
"We do not surrender. But want peace."

The music is a house of glass standing on a slope;
rocks are flying, rocks are rolling.

The rocks roll straight through the house
but every pane of glass is still whole.

Quotidiano



Há um encontro que julgas ter perdido,
mas ninguém te esperava e tu não sabias!

Wednesday, October 5, 2011

Revisitámos Munch: "Operários voltando do trabalho"

Um poema fora do tempo

UM POEMA FORA DO TEMPO

Abre-se o pano sobre a cena deserta:
as cidades vazias, nossos rumos sem norte.
Tudo em nós se fechou numa concha tão fria
que ninguém sabe mais esconjurar sua sorte.

Tudo em nós se fechou e ficamos parados
à espera que nos chamem para o desconhecido.
A alegria fugiu com os cavalos alados
e cerca-nos a cinza de um horizonte ferido.

É agora que o grito faz falta no verso,
é agora que o riso e a música são
necessários à vida como o respirar certo
da criança que dorme ou a côdea no pão.

Um soneto não serve para coisa nenhuma:
se não há mais tribunos, seja então testemunha!

Tuesday, October 4, 2011

Isto também nos não podem tirar

O que ainda nos não podem tirar!

A alegria, e só ela, aumenta a nossa capacidade de agir

Consolação

(Edward Hopper)

" Ce qu'on regrette de la vie, c'est ce qu'elle n'a pas donné - et jamais n'aurait donné. Apaise-toi."

Paul Valéry

Monday, October 3, 2011

Em busca do tempo perdido: o banco das ostras

Outrora agora

ESTES DIAS ROUBADOS AO TEMPO

Os dias de hoje oferecem-nos o sol
como um sorriso de piedade sobre a nossa errância.
Sentemo-nos na esplanada mais próxima,
as raparigas de que falam os poetas
não vieram, mas estas mulheres mostram de si
o bastante para nos bastar. Então, fica sentado

e reflecte um pouco e vê que nada se perdeu,
apenas porque na verdade nada ganhaste
desde que há vinte anos atrás, nestas mesmas esplanadas,
vias acudirem as raparigas de que falam os poetas
e os cafés acendiam nas conversas pontos luminosos
de que te não lembras mais.

Alguns poemas? Pobre de ti,
admitamos que sim.
Olha como o sol faz agora brilhar todas as coisas
e permite que esqueças mansamente
a tua juventude.

Alguém como tu outrora atravessa a rua
a sorrir.


Sunday, October 2, 2011

Meditação matinal, com um verso de Jorge de Sena


Mesmo quando não estamos sós
e nos rodeia o halo de ternura
que a vida nos deu e consentiu,
mesmo assim o mundo continua opaco e alheio
e a realidade é um ente estranho com o seu plano próprio
(a sua agenda, como se diz agora) que não passa por nós
e que nós nunca conheceremos.

Prometeu, o fogo afinal ficou sempre na mão dos deuses.
Nosso foi um breve orgulho, uma exaltação ingénua
de "ser-se humano, passo a passo mais",
como disse um poeta.
Mas tudo o que é humano é precário e o que vem aí não sabemos,
só sabemos que não mais será para nós a Idade de Ouro.

Nem um deus aparece para o podermos recriminar!

Saturday, October 1, 2011

Contra a lei de Gresham na literatura


"Mais justement, depuis les origines, la grande littérature mène une dure bataille contre le kitsch que ne cesse de développer la mauvaise. (...) De "Don Quichotte" à "Madame Bovary", les romanciers ont traité du retentissement de la mauvaise littérature sur la vie des hommes. C'est justement le problème posé au roman et c'est là qu'on voit tout l'enjeu de la littérature. Pourquoi faut-il lire de bons livres? Pour échapper à l'emprise des mauvais sur notre vie la plus intime."

(Alain Finkielkraut)