Sunday, July 31, 2011

Portugal, o Verão


Resplandece - é o termo - o que te cerca
e o mundo não conhece mais melancolia.
Tudo o que foi passado (lembras-te
daquela praça do Norte onde chovia,
da catedral gótica incensada pelo nevoeiro
e dos teus versos hesitantes?)
vai sendo soberbamente varrido por esta luz
mediterrânica e secretamente trágica
que te rodeia
e da qual nasceste.

Não há fuga possível
do sol.

Monday, July 25, 2011

Análise da crise pelos economistas (versão em russo)

Oslo

JORGE DE SENA, "CARTA AOS MEUS FILHOS SOBRE OS FUZIAMENTOS DE GOYA", final
(...) Confesso que,

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».

E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.



Porque somos do Sul!


Lamento per il Sud

La luna rossa, il vento, il tuo colore
di donna del Nord, la distesa di neve…
Il mio cuore è ormai su queste praterie,
in queste acque annuvolate dalle nebbie.
Ho dimenticato il mare, la grave
conchiglia soffiata dai pastori siciliani,
le cantilene dei carri lungo le strade
dove il carrubo trema nel fumo delle stoppie,
ho dimenticato il passo degli aironi e delle gru
nell’aria dei verdi altipiani
per le terre e i fiumi della Lombardia.
Ma l’uomo grida dovunque la sorte d’una patria.
Più nessuno mi porterà nel Sud.

Oh, il Sud è stanco di trascinare morti
in riva alle paludi di malaria,
è stanco di solitudine, stanco di catene,
è stanco nella sua bocca
delle bestemmie di tutte le razze
che hanno urlato morte con l’eco dei suoi pozzi,
che hanno bevuto il sangue del suo cuore.
Per questo i suoi fanciulli tornano sui monti,
costringono i cavalli sotto coltri di stelle,
mangiano fiori d’acacia lungo le piste
nuovamente rosse, ancora rosse, ancora rosse.
Più nessuno mi porterà nel Sud.

E questa sera carica d’inverno
è ancora nostra, e qui ripeto a te
il mio assurdo contrappunto
di dolcezze e di furori,
un lamento d’amore senza amore.

Salvatore Quasimodo

Sunday, July 24, 2011

Para o Sul é que vamos!

SUL

Uma luz branca nasce do voo
destes pássaros que habitam as rias,
contamina o mar com a sua ânsia
de equinócio, mancha a superfície
seca das falésias despojadas de musgo.

Os impérios chegaram até aqui
e não souberam o que fazer; há
exércitos sepultados sob as colinas;
a voz dos sacerdotes foi apagada
pelo vento dos invernos.

Como se este fosse o destino
de todas as navegações, o limite
a que se acolheram os nómadas
sem rumo, a margem acolhedora
onde se dissipa a poeira das viagens.

Nuno Júdice, "Guia de Conceitos Básicos", Lisboa, D. Quixote, 2010

Saturday, July 23, 2011

Acordar


Estranho as manhãs:
saímos do sono e do sonho para entrar num mundo
estrangeiro e diverso,
feito de ângulos rectos e de névoa densa.

Só a memória nos vai convencendo devagar
que esta é a realidade.
Pode ser.

Homenagem à Noruega


"Canção de Solveig", do "Peer Gynt" de Grieg, interpretada por Anna Netrebko

Wednesday, July 20, 2011

Chuva em Paris

Gustave Caillebotte (1848 - 1894)

Sunday, July 17, 2011

Au revoir, Bruxelles


James Ensor, "Les Toits"

Saturday, July 16, 2011

Friday, July 15, 2011

A economia canibal



Museu Magritte, Bruxelas


E há ainda uma luz que se opõe ao seu dia
e um dia que não sabe onde esteve uma casa.
Mas sabemos também: o remorso que havia
nem sequer aprendeu a bater uma asa.

Mas sabemos que ali é a nossa morada
e ninguém nos convence de coisa contrária.
Acordámos na casa que nos foi fechada
e durámos na luz por nossa vida vária.

Ali foi o começo, o nó e a origem.
Quem sabe só de um verso toda a luz que o anima?
Reconheço na casa a memória assassina
que treme de lembrar mentiras que nos fingem.

Em Bruxelas está no Museu de Magritte
a resposta da vida ao seu próprio limite.

Thursday, July 14, 2011

14 de Julho em Bruxelas


Tintin, Jacques Brel e o frio e a chuva do reencontro com o inverno.
"Avec un ciel si bas/qu'un canal s'est pendu"...

14 de Julho

14 de Julho

La Marseillaise - paroles en français

Allons enfants de la Patrie
Le jour de gloire est arrivé !
Contre nous de la tyrannie
L'étendard sanglant est levé
Entendez-vous dans nos campagnes
Mugir ces féroces soldats?
Ils viennent jusque dans vos bras.
Égorger vos fils, vos compagnes!

Aux armes citoyens
Formez vos bataillons
Marchons, marchons
Qu'un sang impur
Abreuve nos sillons

Que veut cette horde d'esclaves
De traîtres, de rois conjurés?
Pour qui ces ignobles entraves
Ces fers dès longtemps préparés?
Français, pour nous, ah! quel outrage
Quels transports il doit exciter?
C'est nous qu'on ose méditer
De rendre à l'antique esclavage!

Quoi ces cohortes étrangères!
Feraient la loi dans nos foyers!
Quoi! ces phalanges mercenaires
Terrasseraient nos fils guerriers!
Grand Dieu! par des mains enchaînées
Nos fronts sous le joug se ploieraient
De vils despotes deviendraient
Les maîtres des destinées.

Tremblez, tyrans et vous perfides
L'opprobre de tous les partis
Tremblez! vos projets parricides
Vont enfin recevoir leurs prix!
Tout est soldat pour vous combattre
S'ils tombent, nos jeunes héros
La France en produit de nouveaux,
Contre vous tout prêts à se battre.

Français, en guerriers magnanimes
Portez ou retenez vos coups!
Épargnez ces tristes victimes
À regret s'armant contre nous
Mais ces despotes sanguinaires
Mais ces complices de Bouillé
Tous ces tigres qui, sans pitié
Déchirent le sein de leur mère!

Nous entrerons dans la carrière
Quand nos aînés n'y seront plus
Nous y trouverons leur poussière
Et la trace de leurs vertus
Bien moins jaloux de leur survivre
Que de partager leur cercueil
Nous aurons le sublime orgueil
De les venger ou de les suivre!

Amour sacré de la Patrie
Conduis, soutiens nos bras vengeurs
Liberté, Liberté chérie
Combats avec tes défenseurs!
Sous nos drapeaux, que la victoire
Accoure à tes mâles accents
Que tes ennemis expirants
Voient ton triomphe et notre gloire!


Wednesday, July 13, 2011

O nosso futuro pós-humano

"Sans doute un jour devant les étendues arides ou reconquises par la forêt, nul ne devinera plus ce que l'homme avait imposé d'intelligence aux formes de la terre en dressant les pierres de Florence dans le grand balancement des oliviers toscans. Il ne restera rien de ces palais qui virent passer Michel Ange exaspéré par Raphael, ni des petits cafés de Paris où Renoir s'asseyait avec Cézanne, Van Gogh avec Gauguin. L'Éternel de la Solitude n'est pas moins vainqueur des rêves que des armées; et les hommes n'ignorent guère cela, depuis qu'ils existent et qu'ils savent qu'ils doivent mourir.
Nietzsche a écrit qu'en face de la floraison d'une prairie au printemps, le sentiment que l'humanité tout entière n'était qu'une semblable luxuriance créée pour le néant par quelque puissance aveugle, s'il était un sentiment réellement éprouvé, ne pouvait pas être supporté. Peut-être. J'ai vu l'océan malais constellé de méduses phosphorescentes aussi loin que la nuit permit au regard de plonger dans la baie, puis la frémissante nébuleuse des lucioles qui couvraient les pentes jusqu'aux forêts disparaître peu à peu dans le grand effacement de l'aube; si le destin de l'humanité est aussi vain que l'était cette lumière condamnée, l'implacable indifférence du jour n'est pas plus puissante que la méduse phosphorescente qui sculpta le tombeau des Médicis dans Florence asservie, que celle qui grava les Trois Croix dans la solitude et dans l'abandon. Qu'importe Rembrandt à la dérive des nébuleuses? Mais c'est l'homme que les astres nient, et c'est à l'homme que parle Rembrandt."

André Malraux, "Les Voix du silence"

Tuesday, July 12, 2011

À nossa gente

Esta GenteEsta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"

Sunday, July 10, 2011

O nosso lugar no jogo

Cito do excelente artigo de Teresa de Sousa no "Público" de hoje:


"Quem pensasse que a decisão controversa da Moody"s de baixar a nota da dívida portuguesa era sobre Portugal, enganou-se no essencial", escreveu ontem no Financial Times o correspondente em Bruxelas, Peter Spiegel. "Na verdade, era sobre a Alemanha". Não podia haver uma melhor justificação.

Conhecem-se as reacções de Bruxelas ou de Berlim e a decisão do Banco Central Europeu de ignorar a recomendação da Moody"s, continuando a comprar títulos de dívida portuguesa mesmo no caso de as outras duas "grandes" resolverem seguir a mesma opinião. Na verdade, é o poder de Angela Merkel que está a ser desafiado. A chanceler decidiu, contra a opinião generalizada dos seus parceiros (incluindo o BCE) que haveria um reescalonamento da dívida grega com a participação "voluntária" dos credores privados. As agências de rating avisaram que isso seria interpretado como "incumprimento selectivo". Merkel respondeu entredentes: "No que respeita às agências de rating, penso que é importante que não permitamos que outros se apoderem da nossa própria capacidade de avaliar e decidir". Portugal foi apenas o primeiro disparo do contra-ataque e, se se quiser, a primeira vítima desta "chantagem" à qual a Europa não parece conseguir responder. "A crise da dívida soberana fez dos políticos europeus piões das agências de rating", escreve a Spiegel. Na Europa, o debate apenas agora começou, mas é de prever que nada vá ficar como dantes.

Saturday, July 9, 2011

Moody's e Sacher-Masoch


A informação de que somos nós, as nossas empresas, os nossos bancos, os nossos municípios, quem paga à Moody's inspira-me esta imagem.

Friday, July 8, 2011

A Maria José Nogueira Pinto e a Diogo Vasconcelos


Apenas posso oferecer o meu poema-post de 7 de Julho.

Escritores redescobertos


A sensacional descoberta por Mário Cláudio do esquivo e oculto Tiago Veiga (que é, aliás, bem melhor poeta do que Mário Cláudio considera) faz-nos pensar em dois autores igualmente esquecidos, estes nascidos na emigração portuguesa em França.

Chamam-se eles Ronaldo Azenha (figura cuja biografia é misteriosa e enigmática, para usar uma redundância bem própria do seu estilo) e Feliciano da Mata (este um pobre mordomo, vivendo numa "chambre de bonne", adequada à simplicidade modesta da sua obra poética).

À atenção dos estudiosos.

Thursday, July 7, 2011

Um poema


Não, nós nunca falamos dos mortos:
porque os lembramos com disfarçado embaraço
ou porque sempre pensamos
que talvez pudéssemos ter feito alguma coisa
para mudar o destino.

E depois calamo-nos. Preferimos calar.

Monday, July 4, 2011

Poema quotidiano

CAMINHADAS NA AVENUE FOCH

para a Didas


Quem me disse que andar nas manhãs claras
dá ritmo ao verso e ar ao coração?
Quem dorme na pérola da água mais rara
e estria o silêncio para dizer que não?

A quem não dei eu hoje um poema
por pensar que dormiam palavras em vão?
És musa: e ainda que por vezes eu trema,
nunca hesitarás empurrar-me com a mão.

Sunday, July 3, 2011

Voltar à poesia : Rosa Alice Branco

TROCAR DE SANGUE

Os altares do sacrifício estão sempre acesos.
Somos o teu gado, Senhor.
Às vezes ordenas que suspendamos a mão sobre o filho.
A faca no ar perdeu o peso?
Agradecemos esta vez como se fosse sempre
mas deixamos o gume apontado ao coração dos homens.
Troca-se filho por cordeiro, troca-se de sangue
como se troca a camisa.
Um homem está sentado à porta da taverna
entre o vinho e o sol. Tem os dentes podres
cheios de buracos. A respiração passa pelas gengivas.
Também elas em sangue e vinho.

(Rosa Alice Branco, "Gado do Senhor", &etc, 2011)

Jurisprudência : à atenção de todos os funcionários públicos

Decidiram o desembargador Calheiros da Gama e o juiz militar major-general Norberto Bernardes, o seguinte, e que se coloca no mesmo tipo de letra e desembargação usada pelo Tribunal da Relação de Lisboa:

Novas oportunidades de caserna
I - A palavra “caralho”, proferida por militar (Cabo da Guarda Nacional Republicana), na presença do seu Comandante, em desabafo, perante a recusa de alteração de turnos, não consubstancia a prática do crime de insubordinação por outras ofensas, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar.
II - Será menos própria numa relação hierárquica, mas está dentro daquilo que vulgarmente se designa por “linguagem de caserna”, tal como no desporto existe a de “balneário”, em que expressões consideradas ordinárias e desrespeitosas noutros contextos, porque trocadas num âmbito restrito (dentro das instalações da GNR) e inter pares (o arguido não estava a falar com um oficial, subalterno, superior ou general, mas com um 2º Sargento, com quem tinha uma especial relação de proximidade e camaradagem) e são sinal de mera virilidade verbal. Como em outros meios, a linguagem castrense utilizada pelos membros das Forças Armadas e afins, tem por vezes significado oupeso específico diverso do mero coloquial.

Mas que doutrina! Ver aqui o Acórdão completo

Friday, July 1, 2011

Os anos 60 em Chaves


Livro a livro, dia a dia, verso a verso
se teceu de mais noite o que antes fora dia.
Mas antes de morrer olha o que foi disperso
de tudo o que amaste e que a ti te fazia.

Olha os dias de inverno quando eras tão novo
que nem frio nem morte se lembravam de ti.
As montanhas à roda e um grito de novo
a nascer do olhar e do amor que não vi.

O peso da memória? Não, antes leveza
de uma cidade viva só nesta glória
que chamo quem conheça a cantar na certeza
que vivemos os anos por detrás da História.