Monday, September 23, 2013

António Ramos Rosa: "Estamos nus e gramamos"


«TELEGRAMA SEM CLASSIFICAÇÃO ESPECIAL» - um poema de ANTÓNIO RAMOS ROSA


                    Ao Egito Gonçalves

Estamos nus e gramamos.

Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico, 
que se nasceu
é certo que não cantou.

As paisagens continuam a existir.
As paisagens são suaves.
Continuam também a existir
outras coisas
que dão matéria para poemas.
A vida continua.
Felizmente que há ódios, comichões, vaidades.
A estupidez, esta crassa crença intratável, esta confiança
             indestrutível em si mesmo,
é o que felizmente dá uma densidade, uma plenitude a isto.

Num mundo descoroçoante de puras imagens
é bom este banho de resistências, pressões, vontades, atritos,
é bom navegar.
porque este presente é logo saudoso.

Na grama um passarinho canta.
Evidentemente que o poeta suicidou-se.

A vida continua.
Certas coisas que pareciam mortas
estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.
Ausentes, dominam-nos.
Não é para nós que utilizam as palavras, 
que insistem,
não é para nós!
Estes grandes ornamentos, estes sábios discursos
fluem em visões, em ondas, como se não no presente.
Ter-se-á o presente extinguido?
A vida continua tão improvávelmente.

Na grama um passarinho canta.
Canta por cantar, ou não, canta.

Eu poderia, com rigor, agora
cantar:
                      Os anjos exactos
                      que empunham tesouras
                      de encontro aos factos
                      - ó minhas senhoras!

Ou rigorosamente ainda,
com veemente exactidão,
inutilizar o poema,
todos os poemas
porque

Estamos nus e gramamos.

                                               4 de Janeiro de 1952 in «Árvore» - 4

1 comment:

  1. ou seja, estamos indefesos, levamos e aguentamos, curioso poema, e eu que nunca me habituei a ler arr, pois dificil de pronunciar esta crassa crença intratável e é descoroçoante o mundo descoroçoante, a r r que nunca se meteu com ninguém, tranquilo no seu lar, escrevendo sem provocar, pois os sábios discursos a- té podiam ser do chefe da altura, veemente tambem tem bom uso poetico aqui, pois vamos, adeus poeta, agora é a viagem através duma nebulosa, mas ele parece conhecer bem o caminho, tempo de escrever a sua biografia, do ler, do estudar, poema sem vaidades o que nos é dado, etc etc etc

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