Wednesday, November 12, 2014

Elegia em memória de Dom Fernando de Mascarenhas, Marquês da Fronteira e Conde da Torre


A memória de ti começa
no  Palácio Fronteira cercado pela polícia de choque:
ao megafone, o ministro dava-nos quinze minutos para sair
e nós subversivos, nós clandestinos,
teus convidados,
hóspedes do mais autêntico aristocrata que tivémos,
nós a decidir em inflamada assembleia
se sair ou não.

Sim, nós estávamos habituados às cargas
policiais e fugir à polícia era a nossa arte,
que cada um praticava à sua guisa.
Por isso os inflamados não queriam sair.
Aí vieste tu, o mais nobre dos anfitriões.

Pegaste no microfone
e disseste que a decisão era nossa,
mas que os azulejos daquele jardim, as estátuas
e cada muro e cada janela
eram o património do que temos de História
e de tudo o que podemos levantar com orgulho
face aos mastins de cada dia.

Saímos um por um.
O ministro ria, dentro do carro.
Os polícias seguravam os cães.
Lembro-me de seguir uma rapariga bonita,
representante da classe operária,
por aquelas ruas de S. Domingos de Benfica.
Mas fui tímido e não fui capaz de dirigir a minha voz
à classe operária.
Perdi-me da rapariga
e talvez também da classe operária.
Mas não de ti, meu Amigo.

Recebias em tua casa
os poetas, os versos e as musas:
e o olhar de Alcipe a seguir-nos à saída
da casa de jantar,
divertida por certo com a diversidade
dos gostos e dos engenhos,
trazia a ironia da tradição
ao nosso bulício pós - moderno.

Também te recebi em S. Clemente *,
aonde os teus imensos amigos brasileiros
acorriam para te visitar,
gratos pela fidalga (é a palavra certa) hospitalidade
que lhes foste dando por Lisboa, anos corridos.
Mas também te recordo, naqueles anos de internet primitiva,
à espera, paciente como ave, que o meu filho saísse do computador
para tu lhe poderes chegar.

Meu Amigo, de ti aqui só dou memórias esparsas.
Mas quem ler os teus sermões
aprenderá alguma coisa da nobreza de carácter.
Aprenderá até que (ó maior das surpresas!)
ela pode existir.
E ter o teu nome.



*Palácio de S. Clemente, Residência do Cônsul-Geral no Rio de Janeiro






4 comments:

  1. Memórias esparsas mas muito afectuosas, dedicadas a um
    ser humano cujo percurso de vida merece a toda a nossa
    admiração..
    M.Júlia

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  2. Muito obrigado por me ter dado a oportunidade de conhecer este DEMOCRATA. Sempre conservei uma certa distância em relação às elites , mas reconheço que existem excepções que valem a pena de ser conhecidas.
    Comme quoi, l'esprit, la culture et la générosité peuvent cohabiter avec les blasons , dans une société elitiste.


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  3. Muito obrigada.

    Maria Helena

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  4. ode ao bom amigo que se foi, obituário que se veste de poesia, azulejos e nobreza em mais dum sentido, etc etc

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