1. A POESIA COMO
MÚSICA DA MORTE
A
morte que é de todos e virá (Jorge de Sena)
Freud ensinou-nos que para o Inconsciente não existe
a morte. Deste modo, a poesia é mais um
mecanismo de defesa do Eu para não acreditar no seu próprio fim.
A poesia é a própria música da morte. E é assim que nós continuamos a tocar pela
noite a nossa pequena música: para não
ouvirmos a morte. Para podermos esquecer
o silêncio da morte. E essa nossa pobre pequena
música pode ser a poesia, mas também pode ser a arte, o amor, a acção
transformadora, tudo aquilo a que alguém se apega ou destina para perdurar,
ficar, poder transcender de alguma forma aquela que é de todos e virá.
Mas como dizia o mesmo poeta, de morte natural nunca ninguém morreu. A morte é sempre um escândalo. Todos os sinos dobram por nós, mas nada fica
depois da nossa passagem. Tentamos por
todas as formas esquecer o grande silêncio que nos rodeia, entoamos as melodias
do desejo, do amor, da obra, mas no mais dentro da poesia voltamos a encontrar
a incontornável música da morte. Pois de
que nos pode valer o que ficará depois de nós, lá onde nós não estaremos?
O receio da
morte é a fonte da arte (Ruy Belo)
2. TRÊS POEMAS:
A ILHA DOS MORTOS
Nunca, entre tanta serenidade,
poderia pousar uma crispação, uma recusa
ou um brusco estremecimento do coração
desmedido. Não
conhecer a paixão
é o privilégio dos mortos. Entre a mão
e a barca,
entre o silêncio e a aridez,
entre a claridade
e o tremor
caem as sombras sobre a água como
a roupa se desprende e cai do corpo desejado,
entrevisto,
como de tanto amor se tece a morte.
(de A Ilha dos
Mortos, Quetzal, Lisboa, 1991)
Alma a quien todo un Dios prisión ha
sido,
venas que humor a tanto fuego han dado,
médulas que han gloriosamente ardido,
su cuerpo dejarán, no su cuidado;
serán ceniza, mas tendrán sentido.
Polvo serán, mas polvo enamorado.
(Francisco
de Quevedo)
A MÚSICA DA MORTE
Já passaram por nós as frias aves,
aprendemos a música da morte.
Ao princípio escurece, um arrepio
vem toldar a memória sobre a pele
e a sombra que deixámos faz-se leve
diferença como eco ou na paisagem
turvo matiz que inquieta de repente:
tudo o que irá esquecer nossa passagem
nos vem olhar agora frente a frente.
Da morte aqui passaram frias aves,
como nuvens sem mar ou mar sem naves.
(de Outras
Canções, Quetzal, Lisboa, 1998)
e só agora
penso:
porque é que
nunca olho quando passo defronte de mim mesmo?
para não ver
quão pouca luz tenho dentro?
(in Herberto Helder, A Morte sem Mestre, Porto Editora, Lisboa, 2014)
MEMENTO MORI
Eu vi morrer três pessoas:
a uma acompanhei até ao fim,
no que seria talvez o que lhe restava de vida
ou porventura o que lhe sobrava de morte;
outra morreu quando eu dormia,
longe do hospital:
e tive que atravessar pela madrugada
uma cidade estrangeira
para chegar à sua morte;
e meu Pai, enquanto eu ia
comprar-lhe uma garrafa de oxigénio,
que nunca soube a quem serviu depois.
Nós nunca vemos ninguém morrer,
porque morrer é por dentro de cada um,
como talvez tudo o que tenha algum sentido,
como talvez o amor.
O que verdadeiramente importa
é opaco ao nosso olhar
e cada prova que vivemos
é só e única:
morrer ou ver morrer
e o amor também.
(de Lendas da
Índia, Dom Quixote, Lisboa, 2011)
Verrá la
morte e avrá i tuoi occhi (Cesare Pavese)