Saturday, October 18, 2014

Carta de Eça de Queirós a propósito do seu trineto

Pelo médium habitual, no transe de ontem, recebi a seguinte mensagem do escritor Eça de Queirós:

Estimados compatriotas:

Aqui no Paraíso dos escritores, onde me aborreço mais do que Ulisses no meu conto "A Perfeição", vou recebendo notícias da Pátria, que continua a teimar em parecer-se mais com os meus romances do que com a própria realidade, o que é um incómodo para qualquer escritor. Há pouco surgiu-me o Tolstoi, entusiasmado, a dizer que a magistratura portuguesa estava no bom caminho, a começar a aplicar a ideia, que ele tanto defendeu, de que deveríamos deixar de todo de ter relações sexuais (mal ele sabe o que a Sofia Andreievna, coitada, tem contado à minha Emilinha!).  Depois veio um dos irmãos Goncourt (nunca sei qual deles é, só se distinguem pelo formato dos bigodes) dizer-me, muito excitado, que um trineto meu tinha ganho um importante prémio literário em Portugal.

Ora esta notícia não podia deixar de me encher de satisfação e orgulho. Fui logo pedir a São Pedro que me encomendasse o livro, pois nós aqui vamo-nos mantendo ao corrente do que se escreve no mundo dos vivos, o Flaubert, por exemplo,  anda contentíssimo com o prémio do Modiano, até deixou a sua lamúria habitual "ai se eu fosse vivo e pudesse reescrever a minha obra toda, aquilo está cheio de falhas", que a gente já não pode aturar. Mas, enfim, lá pedi ao São Pedro que mandasse vir o livro do meu trineto, inchado que estava de alegria.

"Leya?" perguntou São Pedro.

"Uma coisa assim" respondi eu.

"Impossível! Até para Deus é impossível, retomando uma velha querela teológica. É que a Leya não manda livros à consignação." explicou logo o omnisciente São Pedro.

"Nem para o Paraíso?!" espantei-me eu.

"É que o rating de Deus já andava baixo desde o Nietzsche, mas há pouco apareceram o Hitchens e depois o Dawkins e já estamos quase no lixo! Palavra! Pior que a morte de Deus, anunciada por aquele maluco alemão, está a ser agora o lixo de Deus, declarado pela Standard and Poor e pela Fitch. De modo que a Leya mandou-nos dizer "ah, encomendas para o Paraíso nem pensar!". Olhe, mas tenho aqui um poeta novo muito interessante, o…"

"Eu para a poesia, depois do Baudelaire, nunca tive paciência, sabe-o bem. Mas como hei-de então ler o livro do meu trineto?" perguntei, ansioso.

"Eu dessas coisas não posso saber, e que Deus Pai nem suspeite, mas parece que há lá por baixo uns médiuns…"

"Não diga mais!" atalhei, logo. Também há regras no Céu…

De modo que venho solicitar por este meio um médium competente em Portugal (que não seja, por favor, colocado pelo Ministério da Educação) que me possa vir ler o livro do meu trineto. Orgulho de trisavô é três vezes orgulho de avô!

Com todo o amor pela minha Pátria e curiosidade pelas nossas letras, vosso

José Maria Eça de Queirós











  

2 comments:

  1. Aqui neste éden plasmado
    nas portas do frigorífico
    os ímanes não são pecado
    nem há traição ou suplicio


    o que há é almas penadas
    por proibir o proibido,
    na verdade, dão dentadas
    e do bem perdem o sentido

    o inferno é dos beatos
    que vivem da emboscada
    do mal dizer e maus tratos
    Eva Merkel esconjurada

    Só pobres entram no céu
    andrajosos esfomeados
    com o corpo todo ao léu
    por passos Satã crucificados

    não há língua universal
    nem o linguado estigma
    também não há mulher fatal
    e nem nas primas se arrima

    incesto não é pecado
    nem dor nem digno de pranto
    o diabo não é julgado
    e Deus não é nenhum Santo...

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  2. Meu caro Alcipe
    Num tempo cada vez menos dado ao riso, este seu post fez-me soltar uma boa gargalhada. E lembrar a humildade com que o trisneto agradeceu ao poeta Alegre tanta e tão subida honraria...
    Oh! que mal terei eu feito a Deus para, sempre que ligo a tv, apanhar destas baboseiras!

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