Saturday, March 28, 2009

De um artigo que publiquei na revista "Janus"

EXISTE UMA CIVILIZAÇÃO HINDU?



A ideia exposta por Samuel Huntington no seu famoso livro sobre o choque das civilizações levou aqueles que se não revêem em tão particular aberração spengleriana e estão bem conscientes das consequências políticas nefastas que dela decorrem a conceberem uma outra ideia, na linha dos ideais de emancipação do Iluminismo: a Aliança das Civilizações!

Partilho as dúvidas de Amartya Sen: não será um erro aceitarmos a problemática do adversário, irmos à luta no seu próprio terreno? Será legítimo falarmos em “civilizações” como entidades estanques, comunidades de valores reivindicando a sua identidade sob perpétua ameaça? Veja-se o mais recente livro de Huntington, que alerta sobre a ameaça colocada aos próprios fundamentos identitários dos Estados Unidos pelo crescimento exponencial da sua população hispânica.

A Índia obriga-nos ao mesmo tempo a confrontar-nos muito directamente com todas estas questões, dada a heterogeneidade radical do tecido cultural, étnico, religioso e linguístico de que é composta, e a pôr em causa a noção de civilização como comunidade fechada nas suas tradições e rituais (para usar a expressão de Varadarajan). O paradoxo da Índia é cristalino e acaba por ser aquele mesmo com que as nossas próprias sociedades se confrontam hoje: é evidente (é um dado da experiência, um facto do mundo da vida) que existe uma civilização hindu; mas é uma condição de sobrevivência da própria Índia enquanto comunidade política que essa civilização se não considere a si própria como entidade exclusiva e redutora, mas se entenda antes como uma matriz de abertura às mais diferentes influências, misturas e recomposições – e o mais extraordinário é que já há muitos séculos que a Índia sabe isso!

Em 1581, o imperador mogol Akbar chamou os jesuítas de Goa à sua Corte para lhe ensinarem a Fé de Cristo. Entusiasmados, na mira de uma extraordinária conversão, os bons padres acorreram a Fatehpur Sikri, onde, numa tenda especialmente montada para o efeito (pensa-se, porque não há rastos do edifício) sacerdotes de todas as diferentes crenças do Império discutiam àcerca da verdadeira religião, dada a convicção de Akbar que seria possível construir uma religião sincrética, que cimentasse o seu Império de sunitas, xiitas, hinduístas das mais diferentes seitas (incluindo uma que professava o ateísmo!), budistas, jainistas, judeus e cristãos! Desiludiram-se os padres, mas Monserrate permaneceu na Corte do Grão Mogol durante dez anos, observando mais tarde, com amargura tridentina, que “ao autorizar os seus súbditos a seguir qualquer religião, o Imperador Akbar estava na realidade a ofender todas as religiões”. O mesmo pensariam seguramente os devotos teólogos islâmicos! O imperador era influenciado pelas ideias subversivas do filósofo Ibn Al Arabi, que considerava que, sendo o Mundo uma ilusão aos olhos de Deus, todas as manifestações religiosas humanas seriam igualmente ilusões. E Akbar levava a sua abertura em matéria religiosa ao ponto de se ter casado (abençoada poligamia!) com diferentes mulheres de todas e cada uma das religiões do Império, o que certamente representou uma das mais profundas homenagens à liberdade da Fé em toda a História da Humanidade!...

O império mogol começou a desagregar-se quando o pio imperador Aurangzeb resolveu finalmente começar a perseguir todos os infiéis não islâmicos (deixando assim este Império de ofender as religiões com a sua indiferença!), o que levou à revolta dos Maratas, ao fugaz império hindu de Shivaji e à desagregação de qualquer projecto de unidade política do sub continente. Em 1902, já sob o pleno jugo do British Raj, queixava-se Rabindranath Tagore de que

The History of India that we read in schools and memorize to pass examinations is the account of a horrible dream – a nightmare through which India has passed. It tells of unknown people from no one knows where entering India; bloody wars breaking out(…);one set of marauders passing away with another coming in to take its place; Pathan and Mughal, Portuguese, French and English – all helping to add to the nightmarish confusion.

Existe em Nova Deli um grandioso templo hindu, chamado Ashkardam: nele aprendemos, através de uma excelente visita guiada, que a Índia de há 3 000 anos possuía já todas as conquistas da ciência moderna (perdidas, é claro, com a subsequente invasão de todos aqueles predadores muçulmanos e cristãos). Todas as comunidades imaginam o seu passado, mas a desmistificação dos imaginários é parte essencial do pensamento crítico, que não falta na Índia. Os grandes historiadores da Índia antiga, como Romila Thapar, sem negar a grandeza da antiga civilização hindu, ousaram pôr em causa esta versão idílica do passado, tendo sofrido por isso ameaças de alguns hinduístas radicais!

É que nos anos 20 do século passado os ideais da “raça pura ariana” entusiasmaram alguns intelectuais indianos, de que se destacaram Savarkar e Golwalkar, fundadores do RSS (movimento de extrema direita hinduísta, baseada na ideia do “Hindutva”, como núcleo essencial redescoberto da complexa religião hindu). Para esta corrente de pensamento, tudo o que não fosse de pura substância hindu, tudo o que não fosse conforme ao reinventado “Hindutva”, não poderia ser indiano: por isso, cristãos, judeus e muçulmanos (recorde-se que a Índia tem a segunda maior população muçulmana do Mundo) apenas poderiam residir na Índia por generosidade dos hindus, mas nunca poderiam pertencer à sua comunidade nacional - e aqui temos ao mesmo tempo o ideal oitocentista do Estado - Nação homogéneo e a ideia de civilização como identidade estanque, cara a Huntington!

Os pais fundadores da Índia, Gandhi e Nehru, desde sempre se opuseram a esta ideia exclusivista e redutora da identidade indiana, que obviamente tornaria impossível a instituição da Índia como Estado soberano. Na Mesa Redonda de 1931, convocada em Londres para discutir a questão do estatuto político da Índia com as diferentes comunidades indianas, Gandhi distinguiu claramente o movimento de emancipação da Índia de qualquer movimento especificamente hindu, recusando-se a assumir o papel, que lhe fora distribuído pela potência colonial, de representante dos hindus. Não por acaso, Gandhi foi assassinado em 1948 por um militante do RSS…

Na sua autobiografia, The Discovery of India, Nehru assume a visão secularista da Índia, que veio fundamentar o Estado e a Constituição da actual União Indiana. Em comparação com o nosso laicismo, o secularismo institui a total liberdade de religião e a separação entre o Estado e as religiões, mas não se declara indiferente em matéria religiosa, assumindo antes um sincretismo de matriz hindu, que inspirava Gandhi (um espírito profundamente religioso), mas não já Nehru (um agnóstico).

The Discovery of India (embora datado, um livro notável) pugna por uma Índia múltipla e plural, única possibilidade de este sub continente se constituir como Estado, contrariando assim a afirmação de Churchill segundo a qual a Índia não existia e nunca existiria: seria uma mera noção geográfica, como o Equador.

É importante rever estas ideias, primeiro para entendermos que a Índia, mais do que a antiga e deslumbrante civilização hindu (The Wonder that was India) contém, em si mesma, um permanente confronto de civilizações, entendidas como culturas, religiões, línguas ou filiações étnicas: confronto que tanto pode assumir a forma do compromisso negociado, sempre equacionável no quadro da grande democracia indiana, que funciona plenamente desde 1948, como pode assumir (e assim aconteceu infelizmente em 1948, em 1984 e em 2002) a monstruosa face do massacre colectivo! É o que Martha Nussbaum chama The Clash Within .

Mas para que se chegasse a este movimento pendular entre uma normal convivência democrática quotidiana e o afloramento incidental das piores violências inter comunitárias, é convicção pessoal do autor deste artigo que a recusa do secularismo defendido pelos pais fundadores da Índia tem uma relação causal com os surtos de violência mencionados.

5 comments:

  1. Muito interessante.
    Sobre Akbar, existe em Portugal um grande desconhecimento - como, de resto, sobre a Índia em geral, apesar da História - e pequena noção existe sobre os "himalaias" de cultura, refinamento e brilho atingidos pelo Império moghul.
    Pelo particular interesse que perfilho sobre o assunto, deixe-me siblinhar uma trivialidade: Akbar tentou também o sincretismo em matéria de culinária e, entre os seus mais de 400 cozinheiros, parece ter havido portugueses; mas tenha ou não acontecido, o certo que algumas técnicas e materiais da cozinha portuguesa encontraram caminho para a sumptuosa mesa do Imperador pela via da comida goesa, de que era apreciador e que foi bastante influenciada pela portuguesa. Veja-se o "vindaloo", essa aculturação da "vinha d'alhos", as marinadas de vinagre, o sarapatel e a doçaria.

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  2. Veja um interessantíssimo livro chamado "Eating India" que mostra como foram os Portugueses que iniciaram os Bengalis no coalhar do leite e na fabricação do queijo e da manreiga

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  3. Eu, por mim, verei.
    E aconselho a Alcipe e a João Antelmo (é alguma coisa ao seu homónimo Brillat-Savarin?) um livro delicioso:"Curry:A Tale of Cooks and Conquerors", de Lizzie Collingham.
    Nele tem o seu lugar a influência luso-goesa co caril e outras iguarias da Índia e também o grande Akbar.

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  4. Já lemos o "Curry", meu caro Gil. E quando vem Vexa por cá, acompanhado pela sua better half?

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  5. Em breve, em breve, para rever amigos e em busca de especiarias e do ouro de Golconda.
    Será que poderei ver o Samorim e o Catual?

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