Todo o poema é uma intervenção, uma ruptura feita ao uso mundano das palavras. Se não introduzir essa ruptura, essa distância com aquilo a que Heidegger chamava "a tagarelice quotidiana", não chega a ser poema. E cabe aqui citar Sophia:
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
Mas o poeta não é de modo algum o guardião sagrado de uma palavra divina, diluída na aura e na veneração: poeta é aquele que trabalha a palavra, que faz da palavra o seu ofício limpo e a sua verdade austera. E quem faz poesia entra num confronto sem fim com aquelas palavras que nunca foram escritas, de que fala Drummond de Andrade:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
É por isso que a intervenção do poeta não é da ordem do panfleto, do grito ou do hino: todos esses discursos de revolta serão necessários, são talvez hoje cada dia mais necessários: mas isso ainda não é poesia.
Temos todos citado muito ultimamente o verso de Holderlin "Para quê poetas em tempos de indigência?". Mas dizia também o mesmo Holderlin que "aí onde cresce o perigo/ cresce também o que salva". Não, não é a poesia que nos vai salvar. Mas a poesia testemunha da iminência incontornável de um acontecimento futuro, de um acontecimento que não sabemos ainda sequer entrever, mas que decorre da necessidade evidente de romper com a ordem de injustiça e de humilhação que nos submete.
E, como tenho o conhecido víco de citar, volto a Sophia de Mello Breyner Andresen:
Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. (...)E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia
Assim, o que procurei fazer ao escrever A Misericórdia dos Mercados, o meu último livro, foi apenas dar voz à nossa revolta e evocar a longa procissão dos vencidos e humilhados da História que no final do livro vêm junto a Nossa Senhora de Rocamadour (refiro-me ao último poema desse livro) testemunhar em silêncio a sua dor e a sua miséria. É isto uma intervenção? Tudo o que somos capazes de dizer com todas as palavras, sem disfarces nem oportunas dissimulações, acaba por vir a ser certamente, bem ou mal, uma intervenção.
(excerto de uma intervenção que fiz por amável convite da Câmara Municipal de Loulé, com especial dedicatória ao meu amigo Carlos Albino e ao Presidente da Câmara Municipal de Loulé, Dr. Vítor Aleixo)
interessante o conceito poético sobre a relação poesia/intervençao e esplendido e oportuno o poema de sophia como exemplo...
ReplyDeleteGostei muito, parabéns.
ReplyDeleteExcelente, Alcipe!
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