Friday, July 25, 2014

Insónia de um velho

Tinha acabado de ler um mau romance. Francamente mau.
A difusa irritação que me impedia de dormir
levou-me a sair da cama e a ir reler velhos papéis,
memórias de alegria, passados textos,
fotografias de pompa e circunstância
e algumas recensões antigas, em fotocópias baças.

Nenhuma vida é feita só de passado:
vejamos, eu estou ainda aqui!
O novo mundo desperta-me tanto nojo quanto perplexidade,
mas os meus filhos espalhados por dois continentes e quatro países
e a minha persistente curiosidade
pelo acontecimento que forçosamente há-de vir,
do meio de todo este horror e de toda esta mesquinhez
(que não são, oh não, de modo algum, um exclusivo deste tempo..)
levaram-me enfim a fechar a luz sobre tantos papéis velhos
e a vir dirigir-me aqui aos meus quinze leitores, meus irmãos,
meus hipócritas como eu.


Tuesday, July 22, 2014

Mahmoud Darwich, um poeta palestiniano

« Adieu à ce qui adviendra sous peu… adieu,
Adieu à ce qu’apporteront les lieux.
Ma nuit s’est confondue dans la nuit, mon sable dans le sable
et mon coeur n’est plus bien public.
Adieu à celle que j’aurai pour pays, à celle qui sera ma perdition.
Je saurai comment je rêverai bientôt et comment rêver dans un an.
Je saurai ce qui adviendra dans la danse de l’épée et du lis,
Comment le masque m’ôtera le masque.
Dois-je voler ma vie pour vivre d’autres minutes, quelques minutes entre
labyrinthes et minaret.
Assister à l’apocalypse dans la cérémonie des devins
Et savoir ce que déjà je savais? J’ai vu… j’ai vu l’adieu. »


Mahmud Darwish ou Mahmoud Darwich (Al-Birweh1942 - Houston9 de agosto de 2008) foi um poeta e escritor árabe nascido na Palestina, à época do Mandato Britânico.

Adonis, um poeta sírio - libanês

Épi par épi,
N’en laissez aucun…
Cette moisson est notre paradis retrouvé,
Notre pays à venir.
Déchirez les cœurs avant les poitrines,
Arrachez les racines,
Changez cette glèbe
Qui les a portés.
Effacez un temps, qui a narré leur histoire,
Effacez un ciel qui s’est incliné sur eux,
Épi par épi,
Afin que la terre revienne
À son état premier…
Épi par épi…
ADONIS

Adonis (en arabe : أدونيس) est le pseudonyme d'Ali Ahmed Saïd Esber (علي أحمد سعيد), poète et critique littéraire syrien d'expression arabe et française né le 1er janvier 1930

Thursday, July 17, 2014

O chapéu


René Magritte


Esse chapéu de ir a bancos,
vai-lhe, doutor, a matar,
no intermédio labor de falazar…

"Impenitente poetastro,
a que dislate se atreveu?
Não tens onde cair morto,
és da sinistra e ateu…"

Doutor, já aqui não está quem falou…

ALEXANDRE O'NEILL

Wednesday, July 16, 2014

Passada a metade da vida...


LEMBRA-TE, CORPO …
Corpo, lembra-te não só do quanto foste amado,
não só das camas onde te deitaste,
mas também daqueles desejos que para ti
brilhavam nos olhos abertamente,
e tremiam na voz – e algum
obstáculo casual os frustrou.
Agora que tudo está no passado,
quase parece como se também àqueles
desejos tivesses sido dado – como brilhavam,
lembra-te, nos olhos que para ti olhavam;
como tremiam na voz, para ti, lembra-te, corpo.
C. Kavafis
Tradução de Joaquim M. Magalhães e Nikos Pratsinis
Relógio d´Água

Monday, July 14, 2014

Fotografia com poema e dedicatória



É porque olhamos além,
acima do que há em nós,
que fora do vai e vem
sabemos não estar sós.

Por entre nuvens desfeitas
e versos fora de moda,
vês as coisas imperfeitas
pelo avesso da roda

que faz girar este mundo,
enquanto não sairmos fora
para brilhar só no fundo
de uma gaveta de outrora.

Até lá, estamos vivos
e olhamos o que encerra
o mundo em traços precisos
e a alegria na terra!

(Quadras feitas para ti...
  Não se usam? Já ouvi!)




Sunday, July 13, 2014

As viagens

Fazemos todos as mesmas viagens e no fim
é a comum morte que nos espreita, morrida ou matada,
a morte gloriosa ou vil, logo esquecida
ou brevemente chorada.

Viajar é tão só aprender
a mais devagar saber morrer.


Saturday, July 12, 2014

As arcadas do nosso descontentamento

IMITADO DE CAMILO PESSANHA

Chorai arcadas
do Espírito Santo,
convulsionadas
torres aladas
do nosso espanto,

de que esvoaçam
deve e haver:
os Moodys passam
e ameaçam
o nosso ter!

E nem soluçam
caudais de choro:
a ruína sugam
do sorvedouro!

Acções perdidas,
vagos juízos!
Contas escondidas
nos paraísos…

Chorai arcadas
do Espírito Santo:
há gargalhadas
por trás do manto...

Keynes e as girafas



La fin du laisser-faire est un pamphlet incisif que John Maynard Keynes publia en 1926 aux Hogarth Press de Leonard et Virginia Woolf, surtout connues aujourd’hui pour leur première édition des œuvres complètes de Freud en anglais.
Keynes y caractérise de manière caustique l’idéologie que ses collègues économistes offrent au capitalisme, comme une version délirante du darwinisme. Il écrit que pour « les darwiniens […] c’est la libre concurrence qui a bâti l’homme. L’œil humain a cessé d’être la manifestation d’un dessein ayant miraculeusement conçu toute chose du mieux possible ; il s’agit de la réussite suprême du hasard opérant dans un contexte de libre concurrence et de laisser-faire » (Keynes [1926] 1931 : 276).
Keynes explique ainsi l’évolution des girafes dans le « meilleur des mondes » du laisser-faire où sont simultanément optimisés le bonheur de ces sympathiques ruminants et l’usage des feuilles qu’ils broutent. La démonstration mérite d’être suivie pas à pas.
Donc, si nous nous abstenons d’interférer avec les affaires des girafes, 1) la quantité maximale de feuilles sera cueillie du fait que les girafes au cou le plus long parviendront, à force de condamner les autres à la mort par inanition, à s’approcher le plus près possible des arbres, 2) chaque girafe visera les feuilles les plus succulentes parmi celles qui sont à sa portée, et 3) les girafes pour lesquelles la jouissance d’une feuille en particulier est la plus grande seront celles qui allongeront le cou le plus loin pour l’atteindre. Ceci assure que le plus grand nombre des feuilles les plus juteuses aura été avalé, et fait en sorte que chaque feuille individuelle aura atteint le gosier convaincu qu’elle mérite le plus important effort (Keynes [1926] 1931 : 283).

(…)

Si nous avons à cœur le bien-être des girafes, nous ne devons pas perdre de vue la souffrance des cous plus courts condamnés à mourir d’inanition, ni non plus ces tendres feuilles qui tombent à terre et seront piétinées dans la bagarre, ni la suralimentation des girafes à très long cou, ni le mauvais regard en proie à l’anxiété, ni encore l’avidité combative qui obscurcit certains doux visages de leur troupeau (Keynes [1926] 1931 : 285).

(do blog de Paul Jorion)

Friday, July 11, 2014

O papel do Estado numa economia liberal

"The family group's parent company, Espirito Santo Internacional, has been under scrutiny since the disclosure earlier this year of "serious accounting irregularities" and an "extremely negative" financial situation.
A banker who has worked closely with BES said the bank had a €2 bn - €3 bn capital shortfall and the likely solution was some kind of state-brokered rescue. "It is wishful thinking to think that someone in the private sector can come in and rescue BES" said the banker. "The government will soon realize that they need to act to stop the bleeding".
He said that a "Cyprus-style" bail-in was possible, whereby the bank's unsecured creditors and some large depositors could have their bonds converted into equity"
("Financial Times" de hoje, 11 de julho)

Os que viveram acima das suas possibilidades...


Sunday, July 6, 2014

O fogão de sala

Museu Blumenstein, Solothurn, Suíça

"Baudelaire a écrit que la vie est un hôpital où chaque malade voudrait changer de lit. Celui qui se trouve à côté du poêle pense qu'il guérirait plus rapidement à cõté de la fenêtre, et celui dont le lit se trouve à côté de la fenêtre pense qu'il guérirait plus vite à côté du poêle"

(Antonio Tabucchi, "Voyages et autres voyages"

Saturday, July 5, 2014

Homenagem a Ivan Junqueira (1934 - 2014), meu amigo



Essa música que retorna
como o perfume de uma rosa,
essa música que se entorna
de uma ânfora por cujas bordas
escorre ainda o mel de outrora,
essa música insidiosa
numa antiquíssima harpa eólica:
seria o vento em suas cordas?
Seria Orfeu vindo das forjas
do Inferno a que baixou, apóstata,
em busca da filha de Apolo,
Eurídice, a esposa morta,
por quem até hoje ele chora?
Não é nada enfim. Tudo dorme.
Há, sim, alguém que à noite acorda
e vê-se em ruínas, sem memória
de um tempo que fugiu, mas volta
nessa música que se entorna,
e vai e vem, e vem e torna,
nessa música que retorna
como o perfume de uma rosa.

(inédito, publicado na Folha de S.Paulo)

Pretextos de poemas



Caspar David Friedrich




1.

Escrever porque a chuva entretém o ócio
e afinal a memória do mundo era tão frágil
como a nossa precária vida. Escrever poesia,
porque nela o instante vem morrer, desfazer-se,
como as ondas na praia que a chuva agora esconde
- e a poesia é então o modo de extrair da tagarelice do quotidiano
não a pepita de uma ideia, mas a morte de um instante
no seu próprio acontecer. Olho para o nevoeiro que esconde a praia
e penso que a poesia teve sempre por alvo o seu fim,
soubesse ou não.

2.

As conchas que guardavas em colecção
foram desarrumadas e dispersas,
por isso todos os nexos se perderam
e não era a poesia que te podia oferecer
qualquer nova ligação entre as coisas do mundo.
A poesia desarruma,
é como o amor:  a paixão
nega o conhecimento e a arte maior
sucumbe ao instante e às passagens.
Uma casa velha na praia,
onde nada, nada, se guardou
e só as marés se repetem.
Como o amor.



Friday, July 4, 2014

Apontamento à margem

"L'artiste est plus étroitement lié à la matière (multiplicité corporelle) que le penseur"

(Aby Warburg)

Wednesday, July 2, 2014

Sophia de Mello Breyner Andresen

Esta GenteEsta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 

Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 

Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 

Pois a gente que tem 
O rosto desenhado 
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado 
Escreve o seu nome 

E em frente desta gente 
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 

Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"