Meu caro Zé
Manel, não sei se é tarde demais que escrevo este depoimento ou se, pelo
contrário, chego mesmo na última hora, assim como era o teu atraso ao chegar às
nossas reuniões políticas (a não ser, é claro, quando elas eram em tua casa):
chegavas no fim, quando se tinham esgotado todos os argumentos, brilhado todas
as oratórias, enfrentado todos os tenores e, justamente por chegares no fim ,
perguntavas baixinho a um de nós (às vezes a mim, que era o mais novo de todos)
a que ponto tinha chegado a discussão. Ouvida a síntese dos argumentos em liça,
pedias a palavra, entre os protestos e as gargalhadas devidas aos teus repetidos
atrasos, e fazias a síntese de uma posição equilibrada e ponderada, que era
sempre vista com alívio por todos aqueles que queriam realmente chegar a uma
conclusão.
Conheci-te e à
Micuxa em 1973, muito mais novo do que tu (hoje, ressalvada a tua sabedoria da
vida, que foi sempre muito maior do que a minha, temos praticamente a mesma
idade), jovem estudante de militância anti-fascista encetada nas associações de
estudantes, que chegava à CDE para reforçar a linha (esquerda socialista não
PCP, mas também – ainda... – não social-democrata) que vocês, de uma outra
geração, lideravam. A tua casa era o ponto de reunião da nossa célula do Campo
Grande. No andar de baixo morava o então exilado Dr. Mário Soares, teu grande
amigo, que eu não conhecia ainda, embora fosse amigo e companheiro de lutas dos
filhos João e Isabel e, por via deles, encontrasse a Dra. Maria de Jesus (em
Aveiro, nesse verão, vi essa grande senhora, da idade da minha Mãe, avançar com
serena coragem à cabeça da manifestação do Congresso da Oposição Democrática em
direcção aos polícias de choque que fechavam a rua – “tem que ser, meu amigo”,
disse-me tranquilamente). Tinhas ainda um sótão, mas normalmente reuníamos na
tua sala de estar, bem por cima da casa do teu ilustre vizinho.
Recordações
dessa sala de estar baralham-se na minha memória: entre os dias em que havia
carros da PIDE à porta e íamos saindo um a um de garganta apertada e outros
dias em que, já com o teu vizinho no andar de baixo regressado do exílio e a
liderar o PS, se tratava de fundar um novo movimento de esquerda socialista e
redigir o seu manifesto definitivo; entre os dias de luta comum anti-fascista,
em que se tratava de rebater uma posição dos nossos aliados do PC no interior
da CDE e outros dias em que, aliados de Melo Antunes e do Documento dos Nove,
discutíamos se, no caso de uma vitória dos militares comunistas, seguiríamos
Mário Soares para o Porto ou passaríamos à clandestinidade em Lisboa. Uma coisa
me lembro bem: em 1975, nunca defendemos o voto em branco nas primeiras
eleições livres havidas em Portugal.
Estivémos
juntos no inesquecível movimento político “Grupo de Intervenção Socialista”
(GIS) e quando este grupo, em 1977, decidiu extinguir-se e integrar o PS, tendo
eu entrado já na carreira diplomática e estando a democracia consolidada em
Portugal, decidi não aderir convosco ao PS, não por discordar daquela opção
(que me parecia completamente acertada), mas por entender (e nesta minha decisão
o Jorge Sampaio foi determinante) que, se um diplomata não pode, por estatuto,
ter actividade partidária enquanto está no activo, não fazia sentido uma mera
inscrição, sem possibilidade de real intervenção nas instâncias partidárias.
Entenda-se bem: não penso de forma alguma que esteja interdito aos diplomatas
aderir a partidos e muitas colegas meus o fizeram e fizeram muito bem. Esta foi
apenas a minha opção e sempre a mantive. Mas também nunca escondi as minhas
ideias e nunca (como deve ser num país democrático) nenhum ministro me
penalizou ou prejudicou por elas.
Estive contigo
em Nova Iorque, era eu o adido de embaixada que trazia a mala diplomática de
Lisboa para as Nações Unidas (um arcaísmo...) e eras tu embaixador de Portugal
nessa organização (posto que mais tarde veio a ser ocupado por outro ex-GIS, o
nosso comum amigo José Filipe Moraes Cabral). Fiquei em tua casa, no famoso
andar do Dakota Building, era nesse tempo a Residência Oficial: belíssimo
edifício, entre a delicada e algo sinistra decoração chinesa do interior, a
memória do assassinato de John Lennon e os pensamentos diversos expressos alto
e bom som pelo porteiro cubano...
O meu percurso
diplomático passou a ser pontuado pelas tuas visitas a todos os meus postos:
desde Luanda, em 1978, onde, numa grande prova de amizade, correste o risco da
tua vida, ao viajar num carro conduzido por mim (naquela longínqua época,
segundo fontes insuspeitas, o risco da minha condução automóvel era equivalente
ao da guerra civil em Angola); passando por Madrid, onde me apresentaste a
todos os altos quadros do PSOE, contactos que tão úteis foram ao jovem
secretário de embaixada encarregado de seguir a política interna espanhola que
eu era então, nomeadamente no dia 23 de Fevereiro de 1981, quando o Raul Morodo
apareceu na nossa Embaixada a perguntar se Portugal daria asilo político aos
democratas espanhóis (e quer o Presidente Ramalho Eanes, quer o Primeiro
Ministro Francisco Balsemão – era MNE o Professor André Gonçalves Pereira –
responderam imediatamente que sim); em Paris, nos anos noventa, com a Micuxa (e
com a Teresa Paiva?), já com a Didas na minha vida, a cimentar uma amizade que
passou então a ser entre os dois casais; no Brasil, com a tua filha Inês, depois
na Hungria (não nos visitaste na Índia...), em Paris de novo, o ano passado
(fomos os quatro à ópera, temos essa paixão em comum), enfim, em quase todos os
lugares da nossa vida sempre tivémos a alegria da vossa visita amiga, com o
contraponto das nossas idas nas férias à vossa casa do Estoril e do
inesquecível (por razões pessoais que não vêm ao caso) jantar de despedida que
nos deste, na tua casa do Chiado, quando parti para o meu efémero posto na
UNESCO. E bem sabes que vos esperamos aqui em Estrasburgo.
A amizade não
tem alíneas, por isso não vou enumerar como sempre me ajudaste em todos os meus
problemas pessoais, jurídicos ou de outra índole, como a tua experiência da
vida e das coisas me ajudou a esclarecer algumas das minhas dificuldades,
enfim, como és um amigo com quem sempre conto e contarei.
Não faço o teu
perfil jurídico, porque não sou jurista (a não ser pelo curso), mas ele só poderia
ser de louvor e de admiração; não traço o teu perfil político, porque não sou um
político(sem nunca ter abdicado das minhas opções), mas o desenho dele só
poderia ser de total integridade e de absoluta coerência.
Zé Manel,
desculpa o atraso, cheguei agora e como não li as outras intervenções, nem sei
se estou bem enquadrado no debate. Mas deixo-te um grande abraço de inexcedível
amizade e de total confiança.
Estrasburgo, 14
de Abril de 2013
LUÍS FILIPE
CASTRO MENDES