Saturday, February 20, 2016

Soneto


A madrugada interrompeu-me os sonhos,
nem o silêncio do mundo me restava.
À paisagem deserta dos meus olhos
acudia a beleza que durava

num só triunfo feito em alvorada
a que os nossos sentidos se prendiam.
Mas nem um eco veio da chamada
em que o meu coração se comprazia.

Talvez venha a memória consentir
palavras sem fulgor e sem perdão.
Talvez deixemos fogo por abrir
e pedras ou poemas no desvão

do dia que se abria noutro dia
pois assim em palavras nos mentia.

Poema breve


Para quê um poema mais,
um brilho breve, uma modulação,
um trilho?
Tudo se apaga na noite comum
e nos caminhos desfeitos
entre palavras
daninhas. 

Saturday, February 13, 2016

O sonho de Schauble

O SONHO DE SCHAUBLE

O SONHO DE SCHAUBLE
Estavam os mercados em sossego
dos seus juros colhendo doce fruto
naquele encanto de alma ledo e cego
que o Centeno não deixa durar muito;
as bolsas escalando com apego,
os olhos das agências bem enxutos,
saltando e sorrindo sem cuidado:
mas eis que Portugal tem outro fado!
Dos bancos alemães te respondiam
As lembranças que os créditos duravam,
Que sempre ante teus olhos te traziam,
Quando dos seus formosos se apartavam;
De noite, em doces ratings que mentiam,
De dia, em orçamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
De outras vãs políticas francesas
Ou de Keynes ciência vil enjeita,
Que tu, enfim, só o mercado prezas
Pois seu gesto suave te sujeita.
Vendo outras namoradas estranhezas,
O Teutão sesudo, que rejeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do pobre que a ruína não queria
Tirar Centeno ao mundo determina,
Por lhe tirar o juro que tem preso,
Crendo co sangue só da morte indina
Matar da rebeldia o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Boche, fosse alevantada
Contra ua fraca pátria delicada?
Traziam-a os horríficos algozes
À Comissão, movida a piedade;
O alemão, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua os persuade.
As espadas banhando, e os atrozes
Défices de mentira e de verdade
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
(continua)

Sunday, February 7, 2016

Os velhos mestres: Dante


Dante descobria a ordem das esferas celestes,
mas ao mesmo tempo não poupava os seus inimigos
e passava para os tercetos toda a raiva que lhe inspiravam
os políticos de Florença,
sem cuidar de estranhar as coisas do Céu
dos negócios da Cidade
nem o sagrado da poesia do profano
das coisas públicas.

São perfeitos os tercetos: melhor assim
para poder caminhar para Deus e ao mesmo tempo
deixar em pedaços a reputação dos adversários.
O poeta que Platão temia, o inimigo dos mestres pensadores
a inscrever na abóboda divina pintada por Giotto
os insultos do real quotidiano:
esta é a mestria!


O Ulisses de Jorge Luis Borges

ODISEA, LIBRO VIGÉSIMO TERCERO

Ya la espada de hierro ha ejecutado
la debida labor de la venganza;
ya los ásperos dardos y la lanza
la sangre del perverso han prodigado.
A despecho de un dios y de sus mares
a su reino y su reina ha vuelto Ulises,
a despecho de un dios y de los grises
vientos y del estrépito de Ares.
Ya en el amor del compartido lecho
duerme la clara reina sobre el pecho
de su rey pero ¿dónde está aquel hombre
que en los días y noches del destierro
erraba por el mundo como un perro
y decía que Nadie era su nombre?
JORGE LUIS BORGES

Thursday, February 4, 2016

Homenagem a Dona Cleonice


ROMANCE DE DONA CLEONICE BERARDINELLI

De Cleonice, senhora
em seu saber assentada,
venho dizer sem demora
seu louvor: seja louvada
por quanto de si nos deu,
com o tranquilo fulgor
de tudo o que mereceu.
Esta só prova de amor
à língua e às suas artes
deu-nos a todos a flor
portuguesa em todas partes:
dos sertões e das veredas,
do verso mais fingidor,
de Camões até às sedas
da Índia e mais em redor;
do caminho e mais da pedra,
da faca gume sem dor,
da concha donde não medra
Vénus, mas seu esplendor.
E são alusões marinhas
e são caminhos imensos,
língua tua quando minha
nos percursos mais intensos:
o que se diz literatura,
o que poesia se chama
em tão profunda cultura
teu viver luz e proclama.
Nós passeámos por Praga,
por seus becos e travessas,
numa insaciável saga
de viagens e conversas,
que prolongavam a maga
fascinação com diversas
leituras e descobertas
de uma vida que no Rio
tinha as janelas abertas
para o mundo e pra seu fio
de linhas longas e certas
em que a língua se redoura,
com orgulho em sua oferta.
 Pois Cleonice, senhora,
do saber sempre vivido
numa língua que aflora
em povos, versos, sentidos
viveres que aqui se misturam
no riso sempre entendido,
aqui deixo a homenagem
do amigo comedido,
que sem fazer a viagem
deixa o seu preito sentido.