Thursday, August 1, 2013

António Ramos Rosa


O funcionário cansado
  
   A noite trocou-me os sonhos e as mãos
   dispersou-me os amigos
   tenho o coração confundido e a rua é estreita
   estreita em cada passo
   e as casas engolem-nos
   sumimo-nos
   estou num quarto só num quarto só
   com os sonhos trocados
   com toda a vida às avessas a arder num quarto só
  
   Sou um funcionário apagado
   um funcionário triste
   a minha alma não acompanha a minha mão
   Débito e Crédito Débito e Crédito
   a minha alma não dança com os números
   tento escondê-la envergonhado
   o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
   e debitou-me na minha conta de empregado
   Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
   Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
   Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
    
   Soletro velhas palavras generosas
   Flor rapariga amigo menino
   irmão beijo namorada
   mãe estrela música
   São as palavras cruzadas do meu sonho
   palavras soterradas na prisão da minha vida
   isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
   num quarto só
     
António Ramos Rosa,
in "Viagem através duma nebulosa", 1960

2 comments:

  1. tema pelos vistos tratado com frequência, situação laboral existencial confessada:

    Cansaço do funcionário

    Deixará de ser o burocrata meticuloso
    o fingido funcionário realista
    agora que um cansaço chega
    logo de manhã sem razão ou aviso.

    Agora que quase não sobra coragem
    para fazer o chá do pequeno-almoço
    e nem fome ao certo sabe se sente.
    Por fim o chá bebe e algo come.

    Depois, enche a pasta onde inclui
    livro, carteira, memórias, chaves
    papeis, caneta, outras possibilidades.

    Mas seu braço do muito peso incha
    os tendões reclamam, o pulso envelhece.
    Digo-lhes então que vai deixar de ser.

    Jaime Borges

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  2. o chefe apanhou-me com o olho lírico
    ora aqui está um verso que f pessoa gostaria de ter escrito...

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