Friday, May 30, 2014

Os Cantos Pisanos

Descansar comigo mesmo
tornou-se impossível.
Faz-me falta, volte, Sr.Kappus.
Escrever é uma paixão inútil, desculpe,
estou sempre a citar,
a malta nova não gosta,
diz que eu sou culturalista, esquisito,
as minhas citações não são as deles,
já não conheço os conjuntos pop,
já nem devem chamar-se pop, o que acha, Sr. Kappus?
Ajude-me, na sua vida militar deve encontrar muitos jovens
conhecedores de conjuntos pop.
Os jornais literários só falam desses conjuntos,
bandas diz-se agora (não é?)
e os jovens recrutas (agora não há serviço
militar obrigatório), a tropa, sei lá,
deve conhecer essa música,
de modo que o Sr. Kappus bem me poderia…

Senhor Poeta, o ridículo é penoso
quando alguém quer tanto sair de si próprio
para apanhar nas velas esgarçadas do seu barco bêbedo
o vento de um tempo que já não é o seu.
Envergonhe-se, toda a gente cita
e ninguém sabe mais o que está a citar.
Envergonhe-se, ouviu? Pull out your vanity,
ao Pound fecharam-no numa gaiola e ele escreveu
os Cantos Pisanos. Tenha vergonha, Senhor Poeta, tenha vergonha!


A Vasco Graça Moura

Nós atravessávamos contigo as fronteiras que as línguas
impõem umas às outras, de forma que os tercetos de Dante
vinham parar às nossas margens portuguesas,
como se aqui devessem ficar, durar em brilho efémero,
que tudo em poesia é efémero, um dito, uma rima,
uma graça atrevida ou fescenina, passada por detrás de um sorriso
matreiro e cúmplice. Assim estavas connosco.

Bruxelas foi-te pródiga em relatórios como em visitas
demoradas e estudadas à Livraria Tropismes,
e a outras ainda de que me falaste
e eu não conheci. Minha filha, na piscina do teu soneto
"as meninas", brincava com as tuas filhas
e foste o primeiro a publicar-me um livro, há tantos anos,
"julgo que terá de ir ao Porto, à Gota d'Água", disseste,
ainda então estávamos longe de ser íntimos.

Nunca discutimos política: numas voltas eleitorais, disseste-me
"obviamente saio da Comissão dos Descobrimentos",
sem uma ponta de azedume na voz;
e, se não poupavas de nenhum modo os meus amigos,
nunca te ouvi por isso uma provocação, um assomo de mesquinhez,
ou fosse o que fosse de menor no teu modo de estar.

Assim eras e assim nos fazes falta.
Escrevi este poema, porque me convidaram a falar de ti:
mas já não to posso ler nem mandar-to num e-mail...




   

Encore un effort!

A Europa só se fará à beira do túmulo.

(Nietzsche)

Thursday, May 29, 2014

Encruzilhadas


O duelo


Goya, Duelo a garrotazos

Como aumentar os abstencionistas, os euro-cépticos e os euro-fóbicos

Disseram-vos, durante a campanha para estas eleições europeias, que iriam escolher o novo Presidente da Comissão? Que, na sequência do vosso voto, teriam como Presidente da Comissão (ou como candidato natural a pedir uma maioria no Parlamento Europeu para vir a ser eleito Presidente da Comissão) o "Spitzenkandidat" (agora fala-se assim, desculpem) designado por cada uma das famílias políticas europeias? O Juncker, que veio a Portugal fazer-nos revelações sobre Cristóvão Colombo, o Schulz, que veio a Portugal comer sardinhas assadas, o Tsipras, que veio a Portugal a um encontro promovido pelo Francisco Louçã, o José Bové e a Ska Keller, que não vieram a Portugal porque não têm cá família política, o Guy Verhofsdat, que também não veio pelas mesmas razões…

Qual o quê! Se lessem os tratados, saberiam que a designação do Presidente da Comissão (que depois irá ser eleito ou não pelo Parlamento Europeu) cabe, em primeira instância, ao Conselho Europeu, que reúne os chefes dos governos dos 28.  O Conselho Europeu designou para já um mediador para encontrar o melhor candidato.  O que significa que não vai ser Jean-Claude Juncker, o líder designado pela família política europeia mais votada, quem vai ser apresentado a votos ao Parlamento Europeu, mas alguém que a Sra. Merkel consiga fazer aceitar ao "europeísta" Cameron e ao "democrático" Orbán (principais opositores a Juncker no PPE), entre outros...

Consta que a Sra. Merkel já sondou para o lugar a Sra. Christine Lagarde, cuja experiência no FMI a valoriza grandemente para estas funções.

Para que andaram esses senhores a incomodar-se com o Colombo e com as sardinhas?

E, perante isto, que irá fazer este Parlamento Europeu?

Wednesday, May 28, 2014

Um poema de José Miguel Silva

Too big to fail

Como pode um investimento tão fiável
garantir este rendimento crescente, numa
diária distribuição de beijos e outras mais-
valias, ainda por cima livres de impostos?

Embora confiasse na tua competência
para criar valor, confesso que não esperava
tanto quando decidi aplicar nos teus títulos
sensíveis os meus parcos activos emocionais.

O mais estranho no mundo actual, é ser este
um negócio sem perdedores, aparentemente
imune ao nervosismo das tuas acções
ou às flutuações do meu comércio libidinal.

O meu único receio é que despertemos
a inveja dos deuses, no Olimpo de Bruxelas,
e que Mercado, o monstruoso titã, decida
baixar para lixo o "rating" da nossa relação,

deixando-nos sem crédito na praça romanesca
e em "default" o coração. Mas não sejamos
pessimistas. Aliás, ambos sabemos que Cupido
nos ampara com sua mão invisível. E mesmo

que entrássemos ambos em depressão, tenho
a certeza de que o Estado português nos daria
todo o apoio, concordando que um amor como
este é simplesmente demasiado grande para falir.

(de "Serém, 24 de Março")

Monday, May 26, 2014

Raúl Brandão


A nossa época é horrível porque já não cremos - e não cremos ainda.

O passado desapareceu, do futuro nem alicerces existem.

E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruínas, à espera…



- RAUL BRANDÃO, Memórias, I, prefácio.
.

Saturday, May 24, 2014

Dia de Reflexão

Chamam-lhe o dia de reflexão,
como se todos fôssemos movidos e não motores,
consequências e não causas,
personagens dos corredores da "Metropolis" de Fritz Lang,
a alienação quando na cidade passava
e era inverno.

Nós reflectimos cada dia,
mesmo que não reparem,
ou que só reparem se fizermos muito barulho,
o que prejudica sem dúvida a reflexão.

A reflexão é a música que cresce na nossa decisão,
mas que se perde na cacofonia dos possíveis.
A reflexão é o braço estendido a apontar para ti
e a resposta que para sempre esperarás de mim.

Não precisamos hoje de reflectir: precisamos
de erguer a voz, mesmo que incerta,
para sermos ouvidos.
Precisamos
de "uma pequena luz bruxuleante",
precisamos de uma música que virá.

(Lendas da Índia, Dom Quixote, Lisboa, 2011, p. 81; a citação é de Jorge de Sena)

Thursday, May 22, 2014

Não vem de um cenáculo de extrema-esquerda...

"Si on avait une seule dette publique (dans la zone euro), il serait plus simple pour la BCE de stabiliser les taux d'intérêt. C'était une idée que des économistes conseillaient à Angela Merkel fin 2011. Cela ne vient donc pas d'un cénacle d'extrême gauche. L'idée est de mettre en commun les dettes dépassant 60% du PIB dans un fonds capable d'emprunter aux marchés. Les pays remboursent au prorata de ce qu'ils ont mis. L'objectif est de réduire ce fonds à zéro"

(Thomas Piketty, entrevista ao "Monde" 21/5/2014)

Coisas que parecem evidentes, mas não tão limpas...

"Avec l'euro, on a remplacé la spéculation sur les taux de change par la spéculation sur les taux d'intérêt. C'est pire. Comment voulez-vous avoir un débat serein sur les réformes si un État ne sait pas si son budget sera chamboulé parce qu'il devra rembourser plus cher sa dette?"
(Thomas Piketty, entrevista ao "Monde" de 21 de maio)

Wednesday, May 21, 2014

A partir de cartas de juventude de Samuel Beckett





Os meus poemas? Carmina quae legunt cacantes,
como dizia Marcial. Cheiram mal, sim, cheiram a maré baixa,
cheiram ao aborto falhado que foi o meu nascimento,
pois sempre o mal pior é ter nascido, bem verdade,
e para mais os médicos não prestam atenção ao meu problema intestinal.
É isto um autor, sim, falhar, falhar sempre, falhar melhor
e basta-me este crescendo de depreciação para fazer nascer das palavras
carmina quae legunt cacantes.

(montagem de textos do livro cuja capa reproduzo, apenas com um acrescento camoniano e uma citação mais tardia do mesmo autor em Worstward Ho, 1983)


Tuesday, May 20, 2014

Um dos mais belos versos da língua, segundo Manuel Bandeira: "Tu pisavas nos astros distraída"

A partir de uma carta de Marina Tsvetaeva a Boris Pasternak



Fugir à poesia? É tarde, meu querido Boris.
Fazes-me rir com essa tua pretensão
infantil de pensares que és capaz de escapar a este jogo,
que ninguém na verdade aprende a jogar.
Fugir à poesia? Mas é o que fazemos
em cada verso, em cada poema concebido, trabalhado
ou mesmo jogado para o cesto dos papéis.
Escrever poemas o que é senão fugir à poesia,
a essa morte atroz das palavras estilhaçadas pelas granadas dos versos?
Fugir à poesia? Somos como os soldados de uma trincheira em chamas
que já só podem fugir para a frente. E por isso escrevemos,
meu querido Boris. E por isso
nunca mais poderás fugir à poesia.
(E não porque ela te queira
 ou tu a queiras: é como este nosso amor,
nunca consumado, a não ser nestas cartas que a minha filha
só autorizará que sejam publicadas lá para o ano 2000).

(A correspondência entre Marina Tsvetaeva e Boris Pasternak só foi publicada no ano 2000, em Moscovo, por determinação da filha de Marina Tsvetaeva, Ariadne Efron; as cartas que os dois poetas russos trocaram com Rilke foram, contudo, publicadas anteriormente)




Saturday, May 17, 2014

O nascer do dia

Edward Hopper

A melancolia serve-se fria

 C'est en ceci que l'Aristote du Problème XXX,1 n'est plus tout à fait ce père avisé qui, à son fils Nicomaque, enseignait l'éthique de la bonne mesure et de la jouissance bien tempérée. L'auteur que nous découvrons ne professe pas une unique philosophie du bien et des biens. L'éthique mélancolique ne repose pas sur l'art humain, ou trop humain, des possibles. La mélancolie est fixée à une étrange cause, une ouverture à la différence ontologique, où la Vérité serait du côté non de la raison commune et du Logos patiemment médité, mais du trop. Du trop tôt ou du trop tard, du trop de désir ou du trop peu. Il y faut la grâce abrupte de l'occasion , du kaïros, pour la saisir.


(do catálogo da exposição "Mélancolies", Grand Palais, Paris, 2005-2006)
     

O sol negro da melancolia não bronzeia nem alivia

Todos o caminhos conduzem a este lugar
chamado melancolia: mas não te julgues
privilegiado só porque chegaste ao que é comum
a todos e a cada um: o que pensas e sentes
sempre se irá desfazer
nas palavras incompreensíveis de uma língua morta,
num disco arranhado, num borrão de tinta a espalhar-se
na tela. Por isso é tão trivial o que dizes,
como repetir o gesto de enfado e cansaço
com que me recebeste esta noite, melancolia.
Eu não reconheço os teus pergaminhos,
nem quis ser por minha vontade visita da tua casa.
Agora que o caminho me conduziu onde forçosamente
eu haveria sempre de chegar,
podemos já baixar a guarda
e olharmo-nos enfim como nunca chegámos a ter sido.  

Thursday, May 15, 2014

Ilustração do post anterior: a vendedora de flores do Covent Garden

"La fleur absente de tous les bouquets" (Mallarmé)

"Je dis: une fleur! et, hors de l'oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que quelque chose d'autre que les calice sus, musicalement se lève, idée même et suave, l'absente de tous bouquets."  
(Mallarmé)


Senhor Kappus, quando ninguém acredita na poesia,
a não ser aqueles que a não lêem,
a situação fica fácil demais para especularmos juntos
e acabarmos na teoria crítica, na má língua
ou no ressentimento fácil dos pequenos produtores
de curiosidades avulsas. A mulher barbada de Viena
tem agora maior sucesso do que Peter Altenberg.
Mas Altenberg continua lá, em bronze maciço, sentado na sua cadeira do café,
como o nosso poeta na Brasileira - e quem, se eu gritar,
irá voltar o seu rosto para mim, lá do etéreo estado de poesia onde subiu
ou dentro do seu glorioso despojamento de qualidades,
como a pena de pavão ausente de todas as caudas?
Senhor Kappus, quando o ressentimento
ou o respeito humano
despontam entre nós,
esqueça a poesia, poesia é trabalho sério,
é dureza de artesão e rudeza de aprendiz,
esqueça, esqueça, esqueça tudo o que eu lhe disse.
Eu não fui Zaratustra, não tive coragem de enfrentar
a minha águia e a minha serpente
e ouvi demais os tratantes da praça pública.
Olhe, a flor ausente de todos os ramos,
foi afinal a vendedora de flores do Covent Garden,
transformada em princesa,
ou a outra, a que apregoava violetas pelas praças de Madrid,
para consolo de um rei viúvo,
quem nos veio timidamente entregar, pela calada da noite, essa flor,
à hora em que os críticos recolhem a casa e os filósofos ligam a televisão.
Eu não sei quando nos voltaremos a ver, Senhor Kappus.
Talvez quando alguma coisa voltar a existir no fundo dos meus olhos.







Mais futebol

Futebol 
Carlos Drummond de Andrade 

Futebol se joga no estádio? 
Futebol se joga na praia, 
futebol se joga na rua, 
futebol se joga na alma. 

A bola é a mesma: forma sacra 
para craques e pernas-de-pau. 
Mesma a volúpia de chutar 
na delirante copa-mundo 
ou no árido espaço do morro. 

São vôos de estátuas súbitas, 
desenhos feéricos, bailados 
de pés e troncos entrançados. 
Instantes lúdicos: flutua 
o jogador, gravado no ar 
- afinal, o corpo triunfante 
da triste lei da gravidade. 

Futebol

João Cabral de Melo Neto
                                         A bola não é a inimiga
                                         como o touro, numa corrida;
                                         e, embora seja um utensílio
                                         caseiro e que se usa sem risco,
                                         não é o utensílio impessoal,
                                         sempre manso, de gesto usual:
                                         é um utensílio semivivo,
                                         de reações próprias como bicho
                                         e que, como bicho, é mister
                                         (mais que bicho, como mulher)
                                         usar com malícia e atenção
                                         dando aos pés astúcias de mão.

Sunday, May 11, 2014

Um poema de Vítor Nogueira

Há poemas de outros que vêm de repente mesmo ao encontro do momento que estamos a viver.

Depois de Daniel Jonas, um poema de Vítor Nogueira:

CADÊNCIA

É dia de Natal, não sei se importa,
o primeiro desde a morte do teu pai.
Manuel, teu sogro, a fala toda entregue
ao AVC, suspende uma conversa de silêncios,
pedindo o aparelho de oxigénio. E lança-te

um olhar estranho, talvez por no seu íntimo
saber que vais usar a mesma pausa, na varanda,
para obedecer também ao ditame dos pulmões,
àquela dança antiga, àquele espantoso fumo
a erguer-se do cigarro. E nisto o coração

pede-te versos mais profundos. Encolhe
um pouco os ombros, limita-te a passar
de novo a lima entre as palavras e lembra
uma vez mais que a poesia é uma cadência,
há muito que nasceu entrelaçada com a música.

(Vítor Nogueira, Segunda Voz, Averno, Lisboa, 2014)


Saturday, May 10, 2014

O rosto da Europa

Procuras um país no teu país
que não existe e não existiu nunca.
O rosto com que fita o teu país
é uma face feita rocha adunca

a tirar-nos da terra, não esqueças:
" o meu país é o que o mar não quis";
e vê a aridez, que pede meças
à meseta deserta de Madrid!

Pois da Europa assim fomos dizendo:
" o rosto com que fita é Portugal".
Mas o mar, por temível e tremendo,
era mesmo assim o nosso igual.

Agora fita a Boca do Inferno,
vem meditar no Portugal moderno!

Os versos de uma noite de Lisboa...


O SENTIMENTO DE UM ALSACIANO
No bar Procópio, ao anoitecer,
há tal alacridade, tal folia,
que os bulícios, o Tejo, a maresia,
fazem até questão de se esconder.
Alice veio dar- me as boas-vindas
e o Senhor Luís minha bebida.
Falamos com amor de coisas lindas,
de tantas comezainas numa vida...
Ali onde se urdiram tantos golpes
e derrotas se fizeram alegria,
contamos das artroses, dos joelhos
desfeitos sob o peso (nao me voltes
a falar da dieta que eu devia...).
E diz o alsaciano: trapos velhos?
Talvez! Na nossa mesa eram vermelhos...

Meniscos

"Nó" de Daniel Jonas, acabado de sair na Assírio e Alvim, é um notável livro de poesia,  que estou a ler com entusiasmo. Num registo mais ligeiro, noto que os problemas actuais do meu joelho vêm bem descritos neste soneto de Daniel Jonas, que aqui deixo:

MENISCO, PORQUE CHAMAS, QUE É, ESQUECI-TE?
Ou és da sedição o porta-luz,
Primeiro funcionário de uma cruz,
Um fogo de motim que a turba excite?
Meus ossos, sois ossadas, capelinha
De caprichoso voto, sois as traves
Crestadas de um sinistro, mais entraves,
Paus podres claudicando sob a espinha.
Sou o Museu de História Natural
De mim, que fui tutano, agora cerne
Do que fui, abadia de Tintern,
Só cinzas de fogoso animal.
Eu cismo o sismo lento das raízes,
Que as vigas me desabem... as varizes...


Friday, May 9, 2014

A crise do verso

Eu vi o peso que aligeira a vida
e sem palavras desde então fiquei:
um travo amargo no sabor da ferida,
um vão soneto a dizer que sei

reconhecer na vida o seu desastre
e olhar para o mais frívolo dos seres,
qualquer poema em que desembarque
meu ego despojado dos haveres

que a poesia nos guarda como tola
governanta que nada soube ver
e na pobre demência que a assola
continua a rimar sem entender

que o verso que morreu e nos assombra
desta casa é fantasma e sua sombra.



  

Sunday, May 4, 2014

Agradecimento aos que aqui me lêem

"C'est sur cette adhésion donnée dans le secret du coeur que se fonde la prise d'un écrivain sur son public, la "société secrète" qu'il a peu ou pou créé, sur laquelle il n'a que de très vagues indices, et qu'il ne dénombrera jamais (heureusement). C'est par elle seule qu'il est, s'il est quelque chose. C'est là toujours que reviennent s'agacer ses doutes, quand il s'interroge sur le plus ou moins fondé de l'idée singulière qui lui est venue d'écrire."


(Julien Gracq, "La littérature à l'estomac", José Corti, Paris, 1950)

O interlocutor

Vinde cá, meu tão certo secretário.
Não faça essa cara, Senhor Kappus, eu próprio
fui secretário do escultor Rodin e admirava-o tanto
que ele acabou por correr comigo! Não será o seu caso, Senhor Kappus,
pois tem já dado aqui provas de uma insolência,
que certamente não ousaria assumir na sua vida militar.
Ora se lhe chamo hoje meu tão certo secretário,
foi a lembrar-me do Camões, que via no papel banhado das suas lágrimas
o único possível confidente e interlocutor.
Senhor Kappus, eu estou velho e perfeitamente descartável:
com  excepção de uma meia dúzia de pessoas,
o mundo passa muito bem sem mim
e já mo fez saber.
Por isso dei comigo a fazer de si
aquele interlocutor que a poesia procura
e que é sempre um ente ausente ou amado, é a mesma coisa,
ou a figuração do nada, a morte de Deus, o que é mais complicado.
No seu caso, Senhor Kappus, a figura do interlocutor ganha uma espessura
(perdoe-me dizê-lo assim) tão demasiadamente humana
que toda a dimensão metafísica desaparece,
para maior alegria das criancinhas
que ainda nos estejam a ver neste circo. E não esqueça
que eu sou o palhaço rico, eu, o Senhor Poeta,
formado nas melhores academias.

O Senhor Poeta andou a ler Celan e Mandelstam
(ou Mandelstam e Celan, nunca sei quem vem primeiro)
e anda triste, porque ninguém lhe liga pevide
de há uns dias a esta parte.
Eu posso pôr o nariz vermelho, a cabeleira e os sapatões abertos
sem qualquer estado de alma: estou habituado a uniformes.
Agora se quer um ombro para seu consolo e confidência, diga,
mas escusa de me vir com as teorias do interlocutor em poesia,
porque das duas uma; ou o leitor as conhece e não acha graça nenhuma,
ou não as conhece e não sabe sequer se é de achar graça.
Secretário, palhaço pobre, tudo o que quiser,
mas não me impinja teorias como sentimentos nem sentimentos como teorias.
Estamos entendidos?




Saturday, May 3, 2014

Animula vagula blandula in the beach


                       David Hockney



Corre, pequena alma, estes caminhos,
não voltes para trás, não penses mais.
Passa a sebe da frente, olha os vizinhos
e toma o autocarro para o cais.

Podes dizer piadas onde vais,
o bronzeado vai ficar-te bem.
Hóspedes o meu corpo terá mais,
parceiros de sobra ganharás também.

Adriano olhava seu amante morto
e escreveu alguns versos imortais.
Eu apenas te vejo noutro porto
e faço daqui gestos e sinais.

Assim nós degradamos a poesia:
e venha outro para colher o dia!


O poema de Adriano:


Animula vagula blandula
Hospes comesque corporis
Quae nunc abibis? In Loca
Pallidula rigida nudula
nec ut soles dabis Iocos.

Tradução de Jorge de Sena:

Alminha, vagabunda, blandiciosa,
Do corpo a moradora e companheira, 
A que lugares te te vais agora,
Tão pálida, tão rígida, tão nua?
Nem mais às graças te darás de outrora.



Thursday, May 1, 2014

Resposta a um amigo


Nikias Skapinakis, Os Críticos


(também em memória do Vasco Graça Moura)

E se eu lhe respondesse, caro amigo,
que ornato pode ser o pensamento?
E assim tomasse o verso a sós comigo,
nas palavras forjando encantamento?

Barroco ou jogral do niilismo,
dentro da alma o fino pensamento*
faz da fraqueza força no abismo
e peço pense nisto um só momento:

se nos puseram música no verso
e a dodecafonia pereceu,
por estas artes andará disperso
o grande deus que há pouco nos morreu?

Não espero que me responda, meu amigo.
A cada um seu risco e seu perigo…

* Camões




Poema escolhido pelo Senhor Kappus para a educação do Senhor Poeta

                          CAIXADÓCLOS


- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
- Que és o esticalarica que se vê.

- Público em geral, acaso o meu nome…
- Vai mas é vender banha de cobra!

- Lisboa, meu berço, tu que me conheces…
- Esse é dos que falam sozinhos na rua...

- Campdòrique, então, não dizes nada?
- Ai tão silvatàvares que ele vem hoje!

- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
- É do terceiro, nunca tem dinheiro…

- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você…
- Dos dois ou três nomes que o surrealismo…

- Ah, agora sim, fazem-me justiça!

- Olha o caixadóclos todo satisfeito
  a ler as notícias…

ALEXANDRE O'NEILL

O Senhor Kappus põe ordem na conversa

Negue sempre o seu amor pela poesia
se quiser ser minimamente tomado a sério, Senhor Kappus.
Só meninas suburbanas e filósofos urbanos se dedicam hoje a ler poesia:
por isso é fácil, demasiado fácil, dizer-se agora
I too dislike it,
naquele tom tão snob e tão wasp usado pela senhora Marianne Moore.
É que as meninas gostam da poesia pelos sentimentos
e os filósofos pelas ideias,
mas o problema, senhor Kappus, é que a poesia é feita de palavras,
não é feita nem de sentimentos nem de ideias.
Vá, ganhe mais sentido de negócio: nunca diga
que tem amor pela poesia!

O Senhor Poeta é único: quanto mais contente está
(sim, não esconda, está contentinho 
com o que escreveram num blog sobre si ...)
mais amargo e cínico se mostra para o mundo.
Respeite ao menos os seus leitores
e se anda incomodado com os filósofos,
diga-o. O Heidegger fez o que podia para tornar o Hoelderlin
num bom ariano, não fez bem, naqueles tempos?
O Lourenço fez do Pessoa Príncipe da nossa Baviera, o que nos deu
a todos nós uma Baviera e ao Pessoa os castelos.
Porque se queixa dos filósofos? 
Quanto às meninas, bom, o Senhor Poeta está a ficar misógino
e se pensa que nesta fase da sua vida ainda está a tempo de passar
para o campo da literatura homoerótica, desengane-se,
que toda a gente o conhece.
Hoje não esteve brilhante, Senhor Poeta. Nada, mesmo. 


Primeiro de Maio



Pelizza da Volpedo (1868 - 1907) Il Quarto Stato