Sunday, April 19, 2015

RETRATO DE UM DESCONHECIDO, Jorge de Sena, "Metamorfoses", 1963

Fita-nos, como o pintor pensou,
não como jamais fitou alguém.
Ele próprio se não conheceu nunca
nesse retrato que a família, que os amigos,
sempre acharam todos parecido.
O Mestre, anos depois, que por acaso
viu, sem voltar a ver já o modelo,
o quadro esplêndido, achou pintura má
no que fizera; e não reconheceu
aquele olhar tão variamente fundo,
diverso do que, em tintas, punha sobre o mundo.

Mas tudo conjectura, apenas.

Quem era? Qual o nome? Não sabemos
nada, inteiramente nada. A fronte límpida,
a boca que se fecha num desdém tão vago,
os olhos falsamente juvenis, irónicos,
o róseo, o negro, a terra, a leve pincelada
parecem falar. Apenas o parecem. E,
dele, como do Mestre, não sabemos nada.
E quanto à data... a data é muito incerta.

Magnífica pintura.  Oh!  Sem dúvida,
de uma importante personagem. Inda
dependeremos desse jovem? Mas quem era?
Será que ele o sabia? Ou que o pintor o soube
naquel' momento de olhos em que o mundo coube?

Retrato de Jovem Cavaleiro, Escola Portuguesa do século XVI, Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa

Do livro Metamorfoses, 1963

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