Tuesday, November 4, 2014

Poesia e Morte (publicado na revista "Relâmpago", nº34, Abril de 2014)

 1. A  POESIA  COMO  MÚSICA   DA  MORTE
A morte que é de todos e virá (Jorge de Sena)
Freud ensinou-nos que para o Inconsciente não existe a morte.  Deste modo, a poesia é mais um mecanismo de defesa do Eu para não acreditar no seu  próprio fim.
A poesia é a própria música da morte.  E é assim que nós continuamos a tocar pela noite a nossa pequena música:  para não ouvirmos a morte.  Para podermos esquecer o silêncio da morte.  E essa nossa pobre pequena música pode ser a poesia, mas também pode ser a arte, o amor, a acção transformadora, tudo aquilo a que alguém se apega ou destina para perdurar, ficar, poder transcender de alguma forma aquela que é de todos e virá.
Mas como dizia o mesmo poeta, de morte natural nunca ninguém morreu.  A morte é sempre um escândalo.  Todos os sinos dobram por nós, mas nada fica depois da nossa passagem.  Tentamos por todas as formas esquecer o grande silêncio que nos rodeia, entoamos as melodias do desejo, do amor, da obra, mas no mais dentro da poesia voltamos a encontrar a incontornável música da morte.  Pois de que nos pode valer o que ficará depois de nós, lá onde nós não estaremos?




O receio da morte é a fonte da arte (Ruy Belo)



















2. TRÊS POEMAS:

A ILHA DOS MORTOS

Nunca, entre tanta serenidade,
poderia pousar uma crispação, uma recusa
ou um brusco estremecimento do coração
desmedido.  Não conhecer a paixão
é o privilégio dos mortos.  Entre a mão
e a barca,
entre o silêncio e a aridez,
entre a claridade
e o tremor
caem as sombras sobre a água como
a roupa se desprende e cai do corpo desejado,
entrevisto,
como de tanto amor se tece a morte.

(de A Ilha dos Mortos, Quetzal, Lisboa, 1991)



Alma a quien todo un Dios prisión ha sido,
venas que humor a tanto fuego han dado,
médulas que han gloriosamente ardido,

su cuerpo dejarán, no su cuidado;
serán ceniza, mas tendrán sentido.
Polvo serán, mas polvo enamorado.

(Francisco de Quevedo)



















A MÚSICA DA MORTE

Já passaram por nós as frias aves,
aprendemos a música da morte.
Ao princípio escurece, um arrepio
vem toldar a memória sobre a pele
e a sombra que deixámos faz-se leve
diferença como eco ou na paisagem
turvo matiz que inquieta de repente:
tudo o que irá esquecer nossa passagem
nos vem olhar agora frente a frente.
Da morte aqui passaram frias aves,
como nuvens sem mar ou mar sem naves.

(de Outras Canções, Quetzal, Lisboa, 1998)




e só agora penso:
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim mesmo?
para não ver quão pouca luz tenho dentro?

(in Herberto Helder, A Morte sem Mestre, Porto Editora, Lisboa, 2014)
















MEMENTO MORI

Eu vi morrer três pessoas:
a uma acompanhei até ao fim,
no que seria talvez o que lhe restava de vida
ou porventura o que lhe sobrava de morte;
outra morreu quando eu dormia,
longe do hospital:
e tive que atravessar pela madrugada
uma cidade estrangeira
para chegar à sua morte;
e meu Pai, enquanto eu ia
comprar-lhe uma garrafa de oxigénio,
que nunca soube a quem serviu depois.

Nós nunca vemos ninguém morrer,
porque morrer é por dentro de cada um,
como talvez tudo o que tenha algum sentido,
como talvez o amor.

O que verdadeiramente importa
é opaco ao nosso olhar
e cada prova que vivemos
é só e única:
morrer ou ver morrer
e o amor também.

(de Lendas da Índia, Dom Quixote, Lisboa, 2011)



Verrá la morte e avrá i tuoi occhi  (Cesare Pavese)


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