Saturday, February 16, 2013

A tiara abolida (Eduardo Lourenço)


Depondo como quem descansa o peso da sua tiara virtualmente anacrónica e renunciando nela a uma "eternidade" inumana por uma outra visão mais cristã do tempo de Deus como não-Poder, o mais suave dos papas não dilacera a túnica sem costura do Cristo (há tantos séculos dilacerada). Restitui-lhe o sentido e o esplendor da única eternidade que conta aos olhos de um cristão. E que não é a do ouro e seu peso de sangue, nem da glória e sua ilusão, mas a da consciência do seu nada no espelho do tempo mortal do nosso coração. De todas as abdicações míticas do Poder fáctico ou da ficção, desde Ricardo III a Cristina da Suécia, esta de um Papa a quem estava reservada uma descida histórica da Igreja análoga à das Catacumbas que foram para ela esperança e luz de um mundo novo, é a mais enigmática e crucial para o destino do Ocidente. O historiador cristão Jacques Le Goff assimilou-a a uma abdicação real. Também é isso. Mas talvez mais importante seja o desafio que representa para uma outra "realeza", a da Igreja que desde a sua origem subverteu todas as figuras naturais do Poder e que agora despe o seu manto real por "conta de Deus". Que fazer deste"cadeaux", para uns envenenado e para outros sublime?
A História não é o mito em que a convertemos. É só a imagem do improvável e, sobretudo, imprevisível em que nos projectamos e nos esperamos. É o segredo e o mistério da incondição humana que miticamente aí se confere um sentido sem garantia alguma nos céus e na terra. A "morte de Deus" é só a mais tangível expressão de uma Civilização lúdica onde banha e agoniza, ameaçada de extinção, a antiga sarça ardente através da qual "a voz de Deus" se nomeava.
(ler no Público de hoje)

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