Thursday, June 18, 2009

A terceira monção (sem licença do autor citado...)

Duas monções
17.06.2009, Paulo Varela Gomes
Publicado no jornal "Público" e dali copiado sem autorização...



Dizia-se que os europeus na Índia duravam duas monções, frase que serve de título a um livro de Theon Wilkinson publicado em 1987. O autor conta muitas histórias acerca da descontracção com que era encarada a morte: refere, por exemplo, aquilo que escreveu Lady West em 1823: "Aqui as pessoas morrem num dia, são enterradas no seguinte, vendem-lhes os móveis no terceiro dia e já estão esquecidos no quarto." Desde o século XV até à divulgação do ar condicionado, os europeus vivem em regiões tropicais obcecados com a doença. E com razão. A gente passa aqui um tempo e começa a ficar como que gasto, uma fadiga que não tem nada que ver com a actividade, vem do ar, vem do tempo.
Nas planícies do Norte da Índia, terrivelmente quentes durante quatro a cinco meses por ano, os ingleses levantavam-se muito antes do nascer do sol, já estavam abrigados pelas dez da manhã e passavam boa parte do dia imóveis, debaixo dos punkah, os grandes leques movidos por criados.
Mas nas zonas tropicais não há meses de alívio. Em Goa, por exemplo, as manhãs e noites de entre Novembro e Fevereiro são simpáticas. A meio do dia, porém, a temperatura sobe e, com a humidade sempre muito alta, desgasta corpos e humores. Nos meses quentes ou muito chuvosos, anda-se, sem se saber bem porquê, de espírito apagado. Os funcionários europeus queixavam-se de não poderem partir para perto do mar como fazia toda a gente em Abril e Maio. Adivinhamo-los prostrados sobre as secretárias, arrastando sonolências e despachos, e isto quando não estavam doentes, o fígado gasto, ataques de malária, um mal-estar de todos os dias, aliviado apenas na frescura da madrugada ou das chuvas, a partir de Junho.
Os ingleses, que nunca hesitam quando se trata de procurar resolver um problema impossível mesmo que à custa da criação de muitos outros problemas ainda maiores, tentaram erradicar as epidemias na Índia. A National Library of Scotland tem em linha uma portentosa base de dados contendo a cartografia britânica da cólera, peste, lepra, malária, e dos meios postos em acção para combater estas doenças.
O progresso dos meios de combate a doenças foi o primeiro passo de uma higienização não só das condições de vida, mas também da percepção da vida nas regiões tropicais que acabou por criar a ilusão de que os europeus podem habitar e trabalhar nos trópicos como se nada fosse. Pouco a pouco, as doenças começaram a ser relegadas para as "margens" da sociedade. A classe média e alta, de brancos e de não brancos cheios de remédios, servidos por centros de saúde, melhor alimentados, protegidos por ventoinhas e depois pelo ar condicionado, começou a sobreviver bem a duas, três, quatro e muitas, muitas monções. A doença, o desgaste que o clima impõe aos europeus começaram a ser considerados incómodos menores que edifícios climatizados tornam suportáveis.
O homem conquistou o clima. Se eu não andasse quase sempre cansado, acreditaria nisso. Faz-me falta ar condicionado e confiança no progresso.

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