Sunday, September 29, 2013

Dia de eleições

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
(Alvaro de Campos)

Fui hoje votar entre os pingos da chuva
e a indiferenca dos mercados.
Nós realmente não fazemos falta:
somos fungíveis, como se dizia no Direito.
A democracia está nos mercados, ensinam os bem pensantes.
Deus está na natureza e é ele proprio a natureza,
mas os mercados são o que nega a natureza,
o que oferece o futuro ao que fica mais além do humano,
ao que transcende e anula a natureza
no avesso esplendor de todas as paixões tristes. A menina
dança? Leu Espinoza?



Friday, September 27, 2013

Ainda António Ramos Rosa

"(...) a necessidade de escrever não se satisfaz, é a necessidade de tentar dizer o que nunca se disse, de procurar dizer algo que é, digamos, informulado... Eu tenho um poema que diz que o poeta procura escrever sempre o primeiro poema e nunca o escreve. Mas esse primeiro poema persegue-o sempre em cada poema que ele escreve e ele persegue esse primeiro poema que nunca chega a escrever. É por isso que ele escreve sempre."

(António Ramos Rosa, em entrevista ao PÚBLICO, 1994)

Naqueles anos, entre a Chaves do meu ensimesmamento e a Lisboa que a Alice Vieira e o  Jorge Silva Melo, naquele verão de 1966, começaram a mostrar a este menino provinciano, lido e bisonho, "Poesia, liberdade livre" foi um dos livros que mais me ensinou esta luta com as palavras que a poesia é, sem condescendências nem evasivas. E que quando essa vontade de dar luta não é total e sem reservas, não vale a pena escrever:  por isso tantos intervalos de anos, tantos longos períodos de silêncio na minha relação com fazer poesia...  

Wednesday, September 25, 2013

Mack the Knife: the real thing

Para a música de "Mack the Knife"

MÚSICA DE "MACK THE KNIFE"

Já do Marx 
à Goldman Sachs
o caminho
é pra esquecer!
Hora a hora
já melhora
o mercado
a florescer!

Socialismo
liberal,
tira o lastro
social!
Moderado,
fica ao lado
do que apita
o capital!

O futuro
radioso
vejo agora
amanhecer.
Danke schoen,
meine Frau,
Brecht e Weill
não esquecer!

Lisboa, depois da intervenção de Woody Allen, vai ficar assim

Monday, September 23, 2013

António Ramos Rosa: "Estamos nus e gramamos"


«TELEGRAMA SEM CLASSIFICAÇÃO ESPECIAL» - um poema de ANTÓNIO RAMOS ROSA


                    Ao Egito Gonçalves

Estamos nus e gramamos.

Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico, 
que se nasceu
é certo que não cantou.

As paisagens continuam a existir.
As paisagens são suaves.
Continuam também a existir
outras coisas
que dão matéria para poemas.
A vida continua.
Felizmente que há ódios, comichões, vaidades.
A estupidez, esta crassa crença intratável, esta confiança
             indestrutível em si mesmo,
é o que felizmente dá uma densidade, uma plenitude a isto.

Num mundo descoroçoante de puras imagens
é bom este banho de resistências, pressões, vontades, atritos,
é bom navegar.
porque este presente é logo saudoso.

Na grama um passarinho canta.
Evidentemente que o poeta suicidou-se.

A vida continua.
Certas coisas que pareciam mortas
estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.
Ausentes, dominam-nos.
Não é para nós que utilizam as palavras, 
que insistem,
não é para nós!
Estes grandes ornamentos, estes sábios discursos
fluem em visões, em ondas, como se não no presente.
Ter-se-á o presente extinguido?
A vida continua tão improvávelmente.

Na grama um passarinho canta.
Canta por cantar, ou não, canta.

Eu poderia, com rigor, agora
cantar:
                      Os anjos exactos
                      que empunham tesouras
                      de encontro aos factos
                      - ó minhas senhoras!

Ou rigorosamente ainda,
com veemente exactidão,
inutilizar o poema,
todos os poemas
porque

Estamos nus e gramamos.

                                               4 de Janeiro de 1952 in «Árvore» - 4

Homenagem a António Ramos Rosa

POEMA DE UM FUNCIONÁRIO CANSADO


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só


António Ramos Rosa

Sunday, September 22, 2013

O diplomata


      (Busto de D.Luís da Cunha, por Xavéry, no Rijksmuseum)


Andam pelo mundo e para nada servem,
a não ser para comprar quadros e pratas,
e no fim acabam a vida a fugir às dívidas.
Este viémos encontrá-lo, Majestade, em Paris,
numa casa pobríssima, atulhada de papéis,
amancebado com uma judia, a horrenda Madame Salvador :
altivo nos disse que servira a Pátria, mas nada que nos sossegasse
sobre finanças e devoção. A Pátria? A Pátria, Majestade,
é o que vale uma dívida
e o ouro todo do Brasil não chega
para fundar tão perigosa ideia. Uma Pátria!
Dela não nos salvamos nem nos salva.
Que se nos aproveite a alma e os pecados
nos sirvam de caução e de mentira.
Um dia ele mesmo entenderá. Aprontámos o processo
e Vossa Majestade melhor julgará.

Wednesday, September 18, 2013

A nova pedagogia portuguesa


Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra: - todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na língua verdadeiramente reside a nacionalidade; e quem for possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa vai gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o especial e exclusivo encanto da «fala materna» com as suas influências afectivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do carácter. Por isso o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo. «Rue de Rivoli», «Calle d’Alcalá», «Regent Street», «Willhelm Strasse» - que lhe importa? Todas são ruas, de pedra ou de macadame. Em todas a fala ambiente lhe oferece um elemento natural e congénere onde o seu espírito se move livremente, espontaneamente, sem hesitações, sem atritos. E como pelo verbo, que é o instrumento essencial da fusão humana, se pode fundir com todas – em todas sente e aceita uma pátria.

Por outro lado, o esforço contínuo de um homem para se exprimir, com genuína e exacta propriedade de construção e de acento, em idiomas estranhos – isto é, o esforço para se confundir com gentes estranhas no que elas têm de essencialmente característico, o verbo - apaga nele toda a individualidade nativa. Ao fim de anos esse habilidoso, que chegou a falar absolutamente bem outras línguas além da sua, perdeu toda a originalidade de espírito - porque as suas ideias forçosamente devem ter a natureza incaracterística e neutra adaptadas às línguas mais opostas em carácter e génio. Devem, de facto, ser como aqueles «corpos de pobre» de que tão tristemente fala o povo – «que cabem bem na roupa de toda a gente».

Além disso, o propósito de pronunciar com perfeição línguas estrangeiras constitui uma lamentável sabujice com o estrangeiro. Há aí, diante dele, como o desejo servil de «não sermos nós mesmos», de nos fundirmos nele, no que ele tem de mais seu, de mais próprio, o vocábulo. Ora isto é uma abdicação de dignidade nacional. Não, minha senhora! Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros! Mesmo porque aos estrangeiros o poliglota só inspira desconfiança, como ser que não tem raízes, nem lar estável – ser que rola através das nacionalidades alheias, sucessivamente se disfarça nelas, e tenta uma instalação de vida em todas porque não é tolerado por nenhuma. Com efeito, se a minha amiga percorrer a «Gazeta dos Tribunais», verá que o perfeito poliglotismo é um instrumento de alta «escroquerie». 

(Eça de Queirós)

Tuesday, September 17, 2013

Un ami m'a dit

En attendant le tour de la Grèce, retardé le plus possible parce qu’encore plus dérangeant, le Portugal est de retour sur la sellette, n’ayant comme perspective que de suivre la même pente après avoir été longtemps présenté comme le bon élève de la classe. La Troïka a entamé sur place un nouvel examen des résultats du programme de rigueur, reporté étant donné la crise politique, tandis que le vice-premier ministre en charge du dossier, Paulo Portas, réclame un assouplissement de 4% à 4,5% des objectifs de réduction du déficit fin 2014, déjà demandé mais pas obtenu après deux assouplissements successifs, en septembre de l’année passée et mars dernier. « Il faudra qu’on nous explique comment on va pouvoir passer d’un déficit de 5,5% en 2013 à un déficit de 4% en 2014 » s’est interrogé Antonio Saraiva, le patron des patrons portugais. Tenir l’objectif de fin d’année de 5,5% n’est même pas garanti.
Anibal Cavaco Silva, le président, est intervenu de manière inaccoutumée pour demander à la Troïka de « faire preuve de bon sens ». A la clé, le déblocage d’une tranche de crédit de 5,5 milliards d’euros. Le retour sur le marché du pays, prévu pour juin 2014, apparaît de plus en plus compromis, le taux à 10 ans de la dette du pays atteignant un insoutenable 7,4%, se rapprochant de son niveau de juillet dernier au plus fort de la crise politique. Comment, dans ces conditions, se présenter sur le marché pour emprunter afin de commencer à rembourser les 78 milliards d’euros d’aide au total accordées par l’Union européenne et le FMI, les banquiers publics du pays ? Afin d’éviter l’affichage politique désastreux que représenterait un nouveau plan de sauvetage, un habillage pourrait être trouvé sous la forme d’une ligne de crédit.
Les élections municipales du 29 septembre vont être un test aussi bien pour les partis au pouvoir, le PSD et le CDS-PP, que pour le parti socialiste qui aspire à vite y revenir. Une autre échéance approche : la présentation et l’adoption du budget 2014 le mois prochain. Mais les marges de manœuvre gouvernementales sont très réduites, le Conseil constitutionnel ayant une nouvelle fois retoqué des mesures d’austérité, la tension dans le pays très perceptible après de nouvelles coupes de 10% dans les retraites des fonctionnaires décidées pour y suppléer. Côté Troïka, la fermeté est de rigueur, exprimée par le président de la commission, le portugais José Manuel Barroso, ainsi que par Jeroen Dijsselbloem, le chef de file de l’Eurogroupe. Le FMI n’a pas encore publiquement fait part de son souhait d’un assouplissement.
La zone euro peut-elle se permettre une seconde Grèce ? Les tensions sur la dette souveraine portugaise ne risquent-elles pas d’entraîner une hausse des taux affectant l’Italie et l’Espagne ? Mario Draghi, le président de la BCE, n’a pas évoqué ces questions lors de la conférence qu’il a prononcée lundi devant la fédération de l’industrie allemande, mais il a estimé que « la reprise n’en est qu’à ses balbutiements ». Il a ensuite identifié l’innovation et l’investissement comme facteurs d’amélioration de la compétitivité, ne se contentant plus de la désormais classique diminution du coût du travail. Ajoutant, à l’intention des exégètes inspirés : « je ne vois pas la compétitivité comme une course entre les pays de la zone euro avec ses gagnants et ses perdants ». Venant après ses déclarations de grande prudence concernant la conjoncture, cette intervention marque une inflexion pouvant être rapprochée à la fois du ralentissement des achats de titres de la Fed, qui devrait être prudemment annoncé mercredi prochain, et de la publication par Eurostat du dernier chiffre de l’inflation en zone euro, en forte baisse à 1,3% en août dernier contre 1,6% en juillet (il était de 2,6% en août 2012). Mais ce ne sont que des paroles verbales !
Les dirigeants portugais n’ont pas encore assimilé que c’est seulement lorsqu’ils sont le dos au mur que leurs interlocuteurs s’engagent sur les chemins qu’ils avaient juré ne jamais emprunter, et qu’ils accordent des accommodements qui appelleront d’autres rallonges ultérieures… Ce qui ne fait toujours pas une politique mais continue de plonger des populations entières dans la précarité. Encore bravo !

(François Leclerc, no blog de Paul Jorion)

Sunday, September 15, 2013

Marselha





"Hélène Pessayre avait les mêmes craintes sur l'avenir du port de Marseille.

  - Vous savez, dit-elle, le Sud, la Méditerranée... Nous n'avons aucune chance. nous appartenons à ce que les technocrates appellent "les classes dangereuses" de demain.

Elle ouvrit son sac et me tendit un livre.

(...)

- Intéressant?

 - Passionnant. Il y est expliqué, simplement, que, avec la fin de la guerre froide et le souci de l'Occident  d'intégrer le bloc de l'Est - en grande partie en détriment du tiers-monde - , le mythe revisité des classes dangereuses est répercuté vers le Sud, et sur les migrants du Sud vers le Nord.

(...)

Devant nous, le large. L'infini bleu du monde.

- Pour l'Europe du Nord, le Sud est forcément chaotique, radicalement différent. Inquiétant donc. Je pense, enfin, que les États du Nord réagiront en érigeant un limes moderne. Vous savez, comme un rappel de la frontière entre l'Empire romain et les barbares.

(...)

- Je croyais être pessimiste, dis-je en riant.

- Le pessimisme ne sert à rien, Montale. Ce nouveau monde est clos. Fini, ordonné, stable. Et nous n'y avons plus notre place. Une nouvelle pensée domine. Judéo-christiano-helléno-démocratique. Avec un nouveau mythe. Les nouveaux barbares. Nous. Et nous sommes innombrables, indisciplinés, nomades bien sûr.

(...)

Elle se retourna vers moi et ses yeux brillaient d'un bonheur passé.

- Ce sont souvent des amours secrètes..., commençai-je.

- Celles qu'on partage avec une ville, poursuivit-elle, un sourire aux lèvres. J'aime Camus aussi.


(Jean-Claude Izzo, Soléa, 1998) 

O Sul incorrigível

  (Marselha)

Wednesday, September 11, 2013

Sunday, September 8, 2013

Saturday, September 7, 2013

Os libertadores

"Enquanto John Kerry viajava para a Europa à procura de apoios para atacar a Síria, os rebeldes entravam em Malula, cidade cristã a 50 quilómetros de Damasco e onde ainda se fala aramaico. Utilizando altifalantes, os rebeldes instaram os cinco mil habitantes de Malula a converter-se ao islão se queriam continuar vivos".

(Diário de Notícias de hoje)

Friday, September 6, 2013

A cena do ódio

"Mas então, e a Esquerda não comunista? A Esquerda socialista ou não alinhada? (Não me detenho no Bloco para não gastar espaço com minudências.) A Esquerda socialista e não alinhada não renega as suas remotas origens, como um filho não renega um pai alcoólico ou ladrão; e, mais decisivo, partilha com os comunistas, embora mais discretamente, a aversão pela Liberdade tal como os liberais a entendem, e abominam o regime capitalista em que ela nasceu, germinou e se expandiu."

(Fátima Bonifácio)

Wednesday, September 4, 2013

Datas

Sendo hoje o meu (nosso, estas coisas fazem-se a dois) aniversario de casamento, torna-se-me mais nítido o quão relativo se faz um percurso profissional no balanço total da nossa vida. No romance "O Leopardo" o príncipe Salina, na hora de morrer,  conclui que a soma dos momentos com sentido que teve durante toda a sua vida preencheriam no máximo o tempo de um dia. Nao poderei eu dizer o mesmo. Como no poema de Rene Char que um dia te mandei:

Merci d'être sans jamais te casser
Iris, ma fleur de solitude!

Qu'as-tu fait, o mon enfant, de ta jeunesse? (Verlaine)

Quando jovem, escolhi uma profissão ( para a qual fiz concurso de provas publicas) que me atraia por ser uma tarefa altamente política sem ter implicação partidária. Nao que eu seja apartidario, simplesmente nunca tive jeito para a vida dos partidos.

Meu avo adorou a ideia, meu pai achou a minha escolha uma aposta  tao boa como outra qualquer e meu tio, já resignado com o meu mediocre destino de nunca vir a ser um doutorado e futuro catedrático de Direito, apenas me disse que nunca conseguira entender bem o que os diplomatas faziam.

Fico perplexo hoje, quase no fim da carreira, ao dar-me conta que os políticos do meu pais, incluindo alguns dos meus melhores amigos, sentem e manifestam um indisfarcavel desprezo por esta profissão que eu escolhi. Agora e tarde para voltar atras. Provavelmente meu tio tinha razão.

Essa perplexidade tem-me levado a trazer para este blog textos literários sobre a vida diplomática e as  suas servidões e grandezas. Mas olhando para trás ( sem raiva) penso que gostei do que fiz no meu percurso profissional. E certo que gosto muito mais da familia que tive e escolhi, dos meus filhos e  tambem dos meus versos (la vira um novo livro para o ano, se tudo correr bem). Mas nao e por a alma ser pequena ou grande que a gente diz se valeu ou nao  a pena. Hoje a nossa sociedade olha para os diplomatas (que julga poderem ser substituídos por agentes comerciais) como Trotsky em 1917 olhava para a diplomacia ( "do ponto de vista da Revolução, so tenho que publicar os tratados secretos e fechar as embaixadas "). Nao, verdadeiramente so valeu a pena por nos próprios. E por uma coisa em que acreditamos que se chamava Portugal.